A mão
O homem tinha uma mão imóvel, fazia anos. O médico lhe dissera tratar-se de AVC, sigla morta para uma mão morta. Era uma mão feia, arroxeada, pesada. O homem a esquecia tanto quanto ela o esquecia, se assim o era.
Tinha uma vida grande, com grandes cascas. A empresa ia bem, lhe chegavam aos montes ramalhetes de cédulas. Comportava em si um catálogo respeitável no que tange à cultura, títulos importantes, insígnias. Ninguém podia acusá-lo de não existir, afinal, ele havia se vestido. Os que lhe falavam o faziam com os olhos baldios, apoucados, débeis. Enforcando as paisagens, semi-vendo, semi sis.
Sua família era "estruturada", luminosa mesmo. Tinha uma mulher linda e solícita, que o encarava pouco nos olhos, é verdade, mas, enfim, era seu o aquiescer.
Tinha muitos amigos. Mornos. Os copos para os brindes, os sorrisos para as fotos, os meios-olhares. Uma bela casa, protegida por circuitos de TV, equipes de segurança, apólices vultosas. E axiomas, muitos. Era preciso robustecer a tristeza. Era assim o que se chamava de beleza, os espartilhados. Desde há muito, o homem chama a sua dor de poder.
E aquela mão insistente. Mão morta, sísmica, muda-esbravejante. Era uma mão alma-penada, tinha convulsões, socava-lhe o peito "Eu te atormento para que pulses, eu estapeio a tua fúria amorosa de sob o rijo da tua superficialidade". Mão de disparar impropérios "Prefiro sentir teus estilhaços do que essa tua organização morta". Era violência, mendicância a mão que queria, às vezes, um pires de leite. Não raro amorosa, mão de dar, mão de pedir "Ainda tens carícia?" Confidência, arrastamento, sangue. Mão de criança, pele fina, chorosa "Eu preciso morar num afeto longo, preciso do tempo e seus dedos macios. Eu chamo o tempo de mãe?"
Não era afeito a espelhos esse homem. Quando, por acidente, um espelho o raptava, se contorcia, esquivo de si mesmo. Não lhe chocava tanto aquela sua palidez, aquele seu desviço, seu horror era daquela mão que estranhamente brilhava, evolava centelhas. A mão tinha a força de todos os sóis.
Era abrigar em si uma dissidência, uma tumescência estrangeira. Diabo de mão desapaziguada. A mão que não fazia parte, indócil, mão de apontar outra vida, outro possível. Obstinadamente imóvel, sua militância. Protesto. Ficava ali quieta, amealhando a si mesma, a sua sensibilidade particular.
O homem, mentalmente, amputava essa mão. "Que quer dizer essa fenda, esse vazamento? Tinha medo dessa sua grande força, dessa mão iara encantadora de marujos "E se nessa mão houver delícia?", "E se eu amar minha maldição?" Tinha medo de seu precisar humano, pequeno, fustigante, que medo dessa sua miríade de cores, dessa beleza, desse Maior incontido, essa hemorragia de felicidade, dá-me parar de ser, precipício de luz, de Vida, ser divino é morrer demais e se viver demais mata?
Ouvi falar que a mão, um dia, matou o homem. Para viver, muito do homem é lápide. Ouvi dizer também que o homem, um dia, a pediu. Já era hora de uma espécie de casamento.