quinta-feira, 26 de março de 2009

Des-venda-me
E se as marionetes descobrirem que têm poros do tamanho de vitórias-régias?

quarta-feira, 25 de março de 2009

Poeta
Quando o poeta acordar
suado e sem rima
Largado e lasso nos lençóis sem métrica
nas estrofes desgrenhadas
Pálido, calado, caiado de lirismo
corpo molhado de entrega,
coração texto nu de linhas nuas
amado demais
dessa coisa indiscursável de quando alguém dá de amor a sua solidão
...
Dá-lhe um pão de centelha quente e branco
Não passa não a manteiga das palavras
Silencia, poeta
Incêndios
Adolesço femininos
Ser mulher é missão de ignescência
Abro a janela para que o hausto do dia me beije
Tão bonita a vida ardendo o dia
Flamejo
Tenho dentro um vermelho de filhos
Verto lava quando se me revoltam as fertilidades
Segura a minha mão, eu vou te gritar nascimentos
Meu trabalho é de parto, reparto, desapequeno o possível
Amo
Subo no telhado do mundo pra pulsar no vento
Quero meu cabelo assanhado
Receber lufadas de devir como uma rosa-dos-ventres
Girar ao sabor das minhas natividades
Há de ser amoroso, há de ser belo, há de ser "entre"
Estou tão amorosa que o meu peito se constringe
"Entre" é pulsante demais
Adormeço, sangro
Meu leito é o mundo no peito

terça-feira, 24 de março de 2009

Lentos
Quero amar lânguida, demorada
Demoro a minha nudez nas tuas mãos ubíquas
nas tuas mãos ilegisláveis
Arrebento a língua, empurro, esmurro a redondez de um poro
A boca convoca os pelos
Persegue os côncavos
desliza, arranca um grito
Cala, crava na pele
um desenho de hálito
Tatua o teu cio
Broto sucos, relevos, hasteio penugens
Ardo, urjo, insisto
Visto voragens
Mordo o teu corpo
Com a abundância de uma letargia

terça-feira, 10 de março de 2009

Poema de quem cala
To com o coração mais asa que peito
Só, calada, funda
E o meu degredo é esta beleza
Tudo quietinho
Clave de sol beijando o silêncio na boca dos pássaros
Tudo o que dorme em riste
Há cardume de brisas soprando os cios do lago
As borboletas em prece
Todo canto é pétala
Todo nada é nascedouro
Vasculho o avesso de mim e espalho sementes de centelha
Ausculto o adormecido das coisas florescendo
Tenho uma primavera no ventre
Preparo veias e ancas
Minha santa parideira
Também eu nasço na inflorescência dos instantes
Quero nascer miúda, sem grito, sem alarde
Quieta, como o balé das pétalas adolescendo o botão
Quieta, como o chão amando as sementes, fundando os jatobás
O mundo foi mesmo feito de uma beleza exagerada
Tenho fraqueza, não presto pra ser gente
Sou súdita dos meus olhos

segunda-feira, 2 de março de 2009

A mão
O homem tinha uma mão imóvel, fazia anos. O médico lhe dissera tratar-se de AVC, sigla morta para uma mão morta. Era uma mão feia, arroxeada, pesada. O homem a esquecia tanto quanto ela o esquecia, se assim o era.
Tinha uma vida grande, com grandes cascas. A empresa ia bem, lhe chegavam aos montes ramalhetes de cédulas. Comportava em si um catálogo respeitável no que tange à cultura, títulos importantes, insígnias. Ninguém podia acusá-lo de não existir, afinal, ele havia se vestido. Os que lhe falavam o faziam com os olhos baldios, apoucados, débeis. Enforcando as paisagens, semi-vendo, semi sis.
Sua família era "estruturada", luminosa mesmo. Tinha uma mulher linda e solícita, que o encarava pouco nos olhos, é verdade, mas, enfim, era seu o aquiescer.
Tinha muitos amigos. Mornos. Os copos para os brindes, os sorrisos para as fotos, os meios-olhares. Uma bela casa, protegida por circuitos de TV, equipes de segurança, apólices vultosas. E axiomas, muitos. Era preciso robustecer a tristeza. Era assim o que se chamava de beleza, os espartilhados. Desde há muito, o homem chama a sua dor de poder.
E aquela mão insistente. Mão morta, sísmica, muda-esbravejante. Era uma mão alma-penada, tinha convulsões, socava-lhe o peito "Eu te atormento para que pulses, eu estapeio a tua fúria amorosa de sob o rijo da tua superficialidade". Mão de disparar impropérios "Prefiro sentir teus estilhaços do que essa tua organização morta". Era violência, mendicância a mão que queria, às vezes, um pires de leite. Não raro amorosa, mão de dar, mão de pedir "Ainda tens carícia?" Confidência, arrastamento, sangue. Mão de criança, pele fina, chorosa "Eu preciso morar num afeto longo, preciso do tempo e seus dedos macios. Eu chamo o tempo de mãe?"
Não era afeito a espelhos esse homem. Quando, por acidente, um espelho o raptava, se contorcia, esquivo de si mesmo. Não lhe chocava tanto aquela sua palidez, aquele seu desviço, seu horror era daquela mão que estranhamente brilhava, evolava centelhas. A mão tinha a força de todos os sóis.
Era abrigar em si uma dissidência, uma tumescência estrangeira. Diabo de mão desapaziguada. A mão que não fazia parte, indócil, mão de apontar outra vida, outro possível. Obstinadamente imóvel, sua militância. Protesto. Ficava ali quieta, amealhando a si mesma, a sua sensibilidade particular.
O homem, mentalmente, amputava essa mão. "Que quer dizer essa fenda, esse vazamento? Tinha medo dessa sua grande força, dessa mão iara encantadora de marujos "E se nessa mão houver delícia?", "E se eu amar minha maldição?" Tinha medo de seu precisar humano, pequeno, fustigante, que medo dessa sua miríade de cores, dessa beleza, desse Maior incontido, essa hemorragia de felicidade, dá-me parar de ser, precipício de luz, de Vida, ser divino é morrer demais e se viver demais mata?
Ouvi falar que a mão, um dia, matou o homem. Para viver, muito do homem é lápide. Ouvi dizer também que o homem, um dia, a pediu. Já era hora de uma espécie de casamento.