sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Cisão
Amor meu, eu quis fetalizar-te no âmago mais forte de minha maternidade e acalorar-te no mais protegido de mim, e eu não podia e não podia. Eu via o teu sangue espargir pela minha chaga e minhas mãos não bastavam para estancar: era preciso que se vertesse todo o teu sangue de menino para que o homem te nascesse: mas eu era mãe demais para suportar olhar.
Ainda que eu te empurrasse à lápide-nascedouro no morrer do amor, eu queria fetalizar-te... eu cravava as unhas no teu corpo e pedia: me põe no colo, filho meu, que eu também tenho medo de nascer, divide comigo tua placenta, comunga comigo esse pão amargo, havemos de sobreviver ao fórceps: este é o nosso corpo que é dado por Voz do Amor Maior. Será que o pássaro se desespera à primeira fina e pungente luz adentrando o mundo no seu ovo? Haveria de ser minha culpa, haveria de ser meu amor falho e parco. Haveria de ser a miséria de ser eu. Mas eu peço ao ovo que arrebente. Eu quero luz e cores. Que pulse intempestiva nas minhas mãos a eterna fremência do que vive. O que é a falta senão a saudade de uma alimento que existe e que ama minha fome?
Cicatriz
Eu não queria ter aprendido a sangrar, mas foi preciso. As asas precisaram de sangue circulando-as o ímpeto do vôo. Voar pulsa. Parece que foi ontem que eu sangrei estas flores. Parece que foi ontem que eu ensinei essa dor a amar. Parece que foi ontem que eu pus no dentro uma bandagem de estrelas.
Flor-poesia
Conheci uma ferida que virou flor
Pois sim, porque as flores têm biografia
Cansou-se de exsudar sua dor
Emigrou em longa viagem
deixou seus invernos, pois queria florir no verão
É que ferida quando quer ser flor é uma teimosia só
Nem que seja no cimento, nem que seja no asfalto
Bem verdade que seus invernos a polinizaram
É que a dor das feridas também poliniza as flores
E chegaram os dias de sol
Ela verteu suas pétalas do seu sendo e abraçou o sol
Exsudou néctar, sangrou perfume
E hasteou-se na tarde entregue ao vento
Como não acreditas na história de minha flor?
Se também te escrevo travestida de lágrima, mas sou poesia
Capitalismo I
Queres mesmo recolher-te à inanição do teu cativeiro de posses? Tu chamas de sol o teu privativo abajour? És mesmo este servilismo a esta obscena maquiagem de codinome vida? Cosmética, apoteótica, patética, cáustica, estética, estóica, ética, elegante, pungente, cósmica, tua, sã?
Não corre atrás dos teus sonhos como te aconselham os demônios neoliberas, tu terminarás fatigado e vazio. São mesmo teus os teus sonhos ou tu te prostituis do sono de outros sem que percebas? Não são postiços os teus olhos? Sê teu sonho e teu poro. Navega o cerne cristalino e pulsátil dos teus anelos. Bebe das tuas utopias nossas. Nós que somos feitos de busca. Nós, rios sem foz. Cada vez mais minha humanidade me acomete e já sou um caso perdido. Oxalá eu sempre me perca porque o lugar em que disseram que eu me encontraria era estreito e sem sol, e eu sou sempre-viva. Por isso é que me perco, e, assim, vou aprendendo a voltar para casa.
Velhinha
Ordenho as tetas do tempo. Como serão meus aniversários? O que é a velhice senão a antologia das nossas sensibilidades? Maturo a minha puerilidade para, ao final, colhê-la. Ou será que já a colho todos os dias? O que mais fazem os anos senão alocar vida nos nossos poros? Imagino-me com olhos de criança quando a vida se me trouxer eu, nudez tanta, tonta, tinta em tantas cores, envolta em laços de fita, aos 70, 80 anos. Quando eu for pequena, do tamanho de uma velhice, quero trazer nos olhos baços, mas não incólumes, a mesma infanta volúpia: o que mais ser e crescer? Como sempre, sorvendo verdades ininventadas, sabores indegustados, amores indesvelados. Ai que fome, dá vontade de comer um caminho inteiro. Porque o horizonte insiste em intumescer-se no meu peito, uma vastidão me quer para si.
Viva
Acordo e deito com um sol inflando no meu peito. O que será isso? Mo digas tu o que a tua nudez te segreda. Me conta o que os teus poros te bradam. O que sibilam as tuas mordaças rotas? É que eu confio em ti. É que eu sei que flamejas. Outro dia, vi na loja boneca de porcelana tão linda que me sorriu um sorriso tão gordo e desbragado de infância. Ela me brincou inteira. Naquele momento, eu me senti tão túrgida de vida, como se todas as bonecas do mundo brincassem de criança comigo. Como se eu amamentasse toda a prole do mundo com alegria e riso em leitosa forma.
Enigma
Pergunto coisas à minha esfinge interna. Gosto de profundidade. Quero ser funda como uma nudez. Funda e difícil como um horizonte. Funda como uma semente alada. Funda como um silêncio desnecessitado de promessas. Funda e desconcertante como um humano. Funda como a proclamação da luz. Funda como um amor. Às vezes me deito no leito do mundo, placentária e franjada de afetos. O mundo me arremessa suas cores, seus fantasmas, sua alma enorme de mundo. Tão vasto que dói. Ser nua é uma profissão muito difícil.
Teimosias
É já que te conto que a natureza pariu, de madrugada, copo-de-leite. Não em vaso que não gosto de flor aprisionada. Em canteiro de terra solta, de grãos quase flutuando uns sobre os outros. Copo-de-leite amamanta o olho da gente, da luta da gente. Eu também tenho dentro de mim uma haste corajosa e dourada que me eixa e me hasteia ao sol. Furor de minha vida buscante.
Eu que sou fornida de pulsos vida de gesso não quero. Porque sou suor e êxtase. Preciso ser sem mordaça nos poros. Eu me movo e movo o mundo que me move. Vê lá que aceito o veredicto dos geômetras. Viver em mortalha de ângulos, nem jamais. Eu que sou de formas redondas beliscando a tez dos limites. Os limites servem para que eu ame a minha perseverança. Eu os sei e os quero bem. Só não me venham envenenar com eles. Não chames de limite a vossa opressão. Haja o que houver, há de remanescer em mim uma flama de sonho, num ato de sonho.
Desafio
É que pouso nas tuas mãos o frêmito ignescente de órgãos vivos. Aguentas o visgo frágil e incandescente nas tuas mãos? Amar queima, indelével como beijo de criança. Tu que achavas que te sabias erógeno. Então, vomitarás a mornidão dos teus orgasmos esquálidos. Porque a vida abocanha a si mesma com seus dentes largos de devir, é de uma avidez insistente, pungente, entontecedora como o tamanho da Vida.
Lágrima
Lágrima. Esse espaço de água em que ora sou. Nele velejo-me, eu me enterneço com as ondas do mundo. Olho no espelho o veio de minha lágrima desenhando sentimentos no meu rosto, ingurgitado de mim. Achas que me sei? Qual o que! Quanto mais sei de mim, mais descubro que sou ( , ! ! , ,, ,,,,). Cômica, aporto cotidianamente as minhas naus desbravantes de minhas íntimas águas, e penso que descobri a totalidade de meus mananciais. Não me canso de fazer atoleimadas constatações. Qualquer porto é uma gota que aflui para a vastidão de águas de minha insolubilidade. O mar humano é orlado de seus próprios indelimites. Aportamos apenas ilhotas em dízima periódica que nos iludem a doce (necessária?) ilusão do encontro total. A mim cabe amar minhas naus e aniversariar ilhotas conquistadas. A mim cabe pedir que o tempo e sua maresia me ensinem a navegar. Eu canto uma canção de marujos porque já sei ser cálida.
Sonho
Sonho com um dia em que viver seja mais do que manter a cabeça à tona do fel. Por que damos o nome de humano à supressão do humano? Sonho com um dia de poros alforriados. Poros sapientes de que hospedam os poros dos outros. Ah!... a liberdade de libertar-te... um hausto existencial tão gordo, tão fluido... Acaricio a tez dos teus sentimentos não para ter-te, mas para que o teu voo me abençoe. Eu me ajoelho ante a ser tão grande o que vive. Será que a vida ainda é para aquele que a vive? Ou para aquele que a aguenta, que a sofre?
Comunhão
Eu gosto da idéia de tempo. O tempo que rebenta, cheio de seus cios e de suas urgências. O tempo que se aninha, cálido e menino, no colo dos homens. Deito na relva a minha nudez de homem. Peço que a paisagem descalça me pise o dorso com seus pés de natureza, pés com cheiro de vaca comendo capim. Daqui enxergo ao longe uma cachoeira, lágrima serena pendendo morosa no rosto da paisagem, distanciando-se lenta da sua sobrancelha de arco-íris. Esqueci de olhar no relógio porque a paisagem está me amando. Eu pertenço ao capim, ao meu dorso, às vacas, ao indizível.
Carta ao outro
Autobiografo-me no entalhe do teu sendo esculpindo o meu. Sou escultura da tua presença. E a ti também esculpo, e contigo sou grão de argila de uma escultura maior; somos pontos que dançam e desenham o holograma vivo da existência.
Somos labirintos com mapas impressos na carne do outro. Os teus pés se justapõem aos meus e perfazem sendas que se entremeiam, e é do nosso compasso a geografia incógnita que nasce e vai se inventando.
Só no espelho de ti me conheço, apalpo os meus contornos e desbravo os recônditos de mim. Só contigo deflagro meu crescer, teço o caminho que vou elegendo para perscrutar meu dentro, e dele sorver meu sentido e o nosso. Na vida tão lúdica, o onírico, hora a hora me beija a realidade. Numa tela porosa deito-me paisagem, sou pincel e defloro as cores, faço amor com as texturas, seduzo nuances e as aquarelas me são harém. Preciso de teu espelho para guiar minhas mãos e co-autorar minha arte, da tua cumplicidade no rir meu riso e verter meu choro, e no sofrer de minhas perguntas. Preciso que a luz única de teu espelho incida no prisma que sou e me desvirgine as cores que ainda não conheço, preciso de ti.
Me oferto-te cálice e tomo-te por pão, bebemos de nós nosso desvendar. Derramei-me nas tuas frestas e comunguei teu profundo, emergenciada de amar. Somos nutrizes uns dos outros.
Clarice um dia sussurrou-me das entranhas da sua alma "quando uma partícula disse sim a outra partícula a vida fez-se". Ela tem mesmo mania de beijar estranhos e salpicar-lhes as pétalas-palavras que profere.
Jamais dançamos sós. A minha cadência convida a tua e a beleza ímpar do teu passo que do meu diverge a nós converge ao vivo que gestamos.
Mas a rudeza de mim me trai, quem dera eu fosse permeável como Clarice. Estranho o teu diferente e tenho arroubos de excluir-te e de julgar-te e de extirpar-te de mim. Quero ilhar-me em meu egoísmo e tribalizar-me solitário: solidão, palavra impossível.
Ah, quando me inebrio nesse engodo... Rastejo e agonizo inerme, no casulo suicida em que me encarcero, sôfrega e pedinte de ti, pois só contigo gesto e sou gestado, só em nossa união é que a vida quer viver.
Pobre de mim que quero congelar-te e satelizar-te ao insano de meus desejos. Esqueci-me da luz singular dos teus olhos e do intenso da tua alma. Esqueci-me da incandescência vibrátil que te pulsa no peito e te enfuna as artérias, gordas da volúpia de ser ti mesmo. Esqueci-me do teu ímpeto único de amar. Esqueci-me do som irrepetível da tua voz que vibra junto à minha e entoa comigo uma melodia inaudita, instante a instante, sinfonizando nosso existir: somos compositores perenes.
Por que me esqueço? Por que a morte me permeia a vida? Por que esquartejo minha existência e a tua e amargamos o mortificar de nós?Talvez porque verdade seja sinônimo de busca e busca de inconclusão, e de caminhar.
Quem será mais a forte, a vida ou a morte? Ou será que são indissociáveis e complementares como o ser-me e o ser-te, e o sermos todos? Se a morte desse instante é implacável e absoluta. Ou será que é prenhe da vida de outro instante?
A morte. Essa que me estraçalha e me eviscera os nervos, e me desarraiga os pés do chão. Urro a minha dor e vertigino-me na angústia de morrer, em vão tento agarrar-me a corrimãos no éter. Então satanizo a vida e quero proscrevê-la de mim. Mas em que braços eu acordo em outro berço?
A vida se confirma na negação de si mesma, põe-se em negrito para contemplar sua resplandecência, declama seu verso na estranha poesia de seu reverso. Talvez seja uma moça muito vaidosa. A vida en-Luta, mas Vivi-fica.
E se tantas dessas mortes sou eu que te sirvo quando me omito de cuidar-te e de dar-me ao teu cuidado. Ou quando nos abstemos de cultivar os arados do Éden que nos foi dado. Renegamos nossa Mãe-Terra, nossa nutriz maior.
Toma minha vida-menina nos teus braços e dá-me a tua. Viver é cuidar de criança. Se a minha alma tem joelhos fincados nessa concretude, quero fazer-te templo, e que minha oração seja reverenciar a cada dia o inconspurcável de ser-me e ser-te.
Olha comigo essa vida que se convida para viver seu intenso, acalenta comigo o escavar das alturas de nós. Havemos de libertar os alados que nos habitam, ávidos por alçar voo de asas bem abertas, livres e entrelaçadas, orlando o horizonte inimaginável que vela por nós.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Menina dos olhos do sonho
Eu só cobiço um dia de viço
Não precisa rima nem sina
Eu só rabisco e insisto
O sonho que sonha a menina
A menina tem olhos de sonho
E o sonho dela é a menina dos olhos
Não sei se a menina é dos olhos
Ou se é menina do sonho
Porque menina sem sonho
É olho sem menina
E até no sonho da sina
Tem menina pra ter sonho
Parto
Um corpo adoecido
Emagrecendo paulatino, esvaziando-se de si
Minhas células conspiram contra mim?
Ou apenas me remam ao meu encontro?
Eu que sempre fui eu agora sou vetor de mim para onde
Para onde.
Inexoravelmente, estoicamente, incandescente, murchante
Bebendo do dúbio copo, metade vida, metade morte
Pêndulo estéril de oráculos
Talvez eu sare, talvez eu morra, talvez eu perceba
Que a vida foi sempre um caudaloso talvez
Talvez eu saiba que amei tanto e tanto
Que a vida foi excruciante vida deleitosa, leitosa e sementeira
Talvez eu manche o avental da enfermeira de uma rubra transcendência
Vermelho mais luminoso que vermelho
Mais unguento que cruento
Talvez eu a ame indelevelmente
Talvez eu lhe conte o meu segredo de prenhez travestida de despedida
Talvez eu sangre nela a minha vivacidade e a minha lucidez
Talvez eu encomende cuidados aos meus que ficam
Adorados, amados
Suo mais de saudade que de febre
Eu que adoeço a dor difícil de um novo começo
Talvez eu jejue de mim mesma
Última corajosa refeição para que eu, enfim, caiba num corpo de gênese

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Advertência
Não brinca com gasolina sobre o corpo das palavras que elas sabem ser sol.
"Claricices"
Silêncio. Palavras amamentando pessoas. Quero sobrevoar minhas reentrâncias, fazer piruetas no ar de meus cernes. Hei de içar borboletas cheirando a terra. E de uma secreta dor eu gesto as minhas asas, preparo no ar a minha mangedoura, ainda que me pesem as asas sujas de terra. Será que é amor o nome desse húmus? Será que é fé a encorpadura desses caules? E de multi-galhos eu quero viver, eu quero angariar divindade.
Deus, será que se eu me deitar bem fundo no avesso de mim, eu Te toco? Também Tuas mãos etéreas vejo sujas de terra. Não é curioso eu estar me lavando na terra em que me instalastes? Eu mordo a terra porque sou ser fotóvoro.
Holofotes sutis desvelam a minha intra-aurora. E de tanto me despir eu me encho de pétalas. Que é em estado de nudez absoluta que eu amo. Eu, nudez tanta, revirgino-me, rego mais amores. Que quanto mais eu me desnudo, mais eu escancaro a minha mistura de terra e luz.
Dou minha mão em casamento ao meu desnudamento. E nunca haverá mais sacro despudor. Alguém já ouviu falar em gente destilada? Se consegue lavando gente com terra. E pensar que um dia foi tanta dor, como se eu tivesse dormido no fel. Mas chega o tempo do despertar e, fel-incitada, acordei. Ou fel-excitada, não sei. Sou do amor que sei e des-sei, inconclusa e cotidianamente. Lembra que eu me revirgino? Tenho um estoque inesgotável de hímens, tal qual meus óvulos. É preciso maturá-los para, então, revirginá-los. E é tudo que eu digo me reparindo. Palavras parindo pessoas. Será que se pode chamar de dor a vida dilatando a pelve? É dor a vida esgarçando a superficialidade para nascer?
Que graça de traça
Ai amor, te atentas à tua toga que ela está forrada de traças e de leis baças
Ai que a toga quer mesmo é virar lona de circo
porque vê criança injustiçada sem brinquedo e sem direito a riso
A toga de traça quer mais é fazer troça
até ver criança de riso escondido e costela de fora
amar colorido o homem da toga que dá cambalhotas e sentencia sorisos
Ah que toga sem juízo
O homem da toga, sisudo e conciso
alberga também, debaixo da toga,
criança magrela que já não sabe
chamar o mundo de paraíso
Ah, é porque as suas leis têm números demais
E os números desaprendem nos homens as suas piruetas
E não sabe mais ver criança de barriga balançando, cheia de riso e algodão doce
Quem sou eu e quem és tu, nesse show de rebuliço?
Os adultos da toga que deixaram órfãos so seus papéis?
Não me lembro quem eu sou: a toga, a traça, a lona?
Ai amor, meu papel eu não o tenho lido e sabido
E é banguela a minha jurisprudência
Só me deixe ao lado da criança
Porque a barriga de riso tem fome
e pra ela, eu sei que é preciso,
que eu corra a cozer rapidinho
um mundo, ao menos um pouco,
com gosto de paraíso
Instante
Vi foto de beija-flor tão linda que me espirou néctar. E olhei com um olho tão enxergado que virei lágrima. O sentido das coisas ficou tão intenso que galgou para um lugar chamado silêncio. O silêncio é a quintessência do sentido.
Jurisprudência
Somos tão sábios e há sangue na nossa toga. São tão rápidos os nossos chips que já não apreendem sequer a durabilidade de um sorriso. São tão velozes os nossos trilhos e milimétricas as nossas estações, que já não sazonam sequer a nossa compreensão de nós mesmos. Eu já não desço mais do bonde para te abraçar. Já não tenho tempo de sentir o que sou eu. Amputo as coisas das coisas. Porque sou tão meteórica e pirotécnica que já não me posso apreender. Até quis olhar no espelho, mas eu já tinha passado.
Tenho saudades de me sentar comigo na varanda, sob o sigilo das samambaias, sob a lira dos pintassilgos. Como faz falta gente na vida! Tenho saudades de me deitar na relva sobre o amor das coisas. Sou sensacional e já não tenho sensações, nem tempo de me comemorar. Envolveram meu corpo em papel celofane (e eu queria abraço de criança) e a minha caricatura embrulhada sorri um sorriso estético e enfermiço. Eu chamo de opulência a minha fome. Eu chamo de mundo meu franco desespero.
Eu quero me espraiar nos prados sobre a volúpia da terra. Dentro de mim, venho sonhando a minha vocação de enxada. Porque preciso revolver a minha casa e arejá-la com túneis humanos. O que fiz de minha oca? Vou sonhar searas da cor de tudo que eu preciso.
Livro nascido
Se revistares meu íntimo agora, encontrarás placidez de riacho. Cachos de água penteando a sede da terra. Senta silente às minhas margens e põe os pés nas minhas águas. Vê como é tranquilo e tépido o que sou. Eu amorno os teus pés para te amar. Preciso apenas que roce sobre mim um lençol esvoaçante e branco. Estou extenuada e pálida e há suor na raiz dos meus cabelos. Um lençol que me acarinhe e que eu sangre o sangue repousado da que deu à luz uma saga. Só preciso da carícia de uma cicatrização. E do teu amor. É já que acordo com fome e com o peito cheio de leite. Fecho as páginas desse relato e elas pesam e pingam afetos. Estou extenuada e largada no leito das minhas emoções. Eu me despeço e te desejo vida e azaléas. Nada mais preciso, apenas ser.
Tempo
Eu penso em envelhecer. Envelheço porque se apinham em mim as minhas intensidades. Mãe, agora que eu cresci e já fiz lição de casa, lição de tantas casas que fui, morei, amei, tu me deixas nascer um pouco no quintal? Envelheço porque a memória me enche de nácar.
Menino
Olha o menino debruçado na árvore, se refestelando de fruta boa. A gente não sabe o que brilha mais, se é a fruta madura ou é o menino que é gente verde. Tu sabes permitir que ele amadureça encantos? Tu me ensinas a aprender contigo? Tu deixas que as minhas perguntas abracem as tuas? Será que eu sou madura para beijar o menino verde? Será que eu sei velar pela paz das frutas? Será que sou eu que sou verde? Acho que sou e muito.
Rio
É já que te conto que andava doída de minha secura, me esfarelava por dentro, puída de meus sentimentos calcários. Um rio convidou meu olhar e deu de beber à minha língua. Tu sabes como é um rio? É o registro de um amor. É quando a terra se abre, langorosa, em côncavo e recebe, em amor, a presença das águas. Lembras que o mundo ama o mundo? Toda secura guarda em si uma promessa de águas. Toda sede é a mãe do segredo de um rio. Todo rio, um dia, acarinhou uma planície de seixos secos. Até hoje é tão côncavo o que te escrevo que me marulho inteira e me nadam peixes. Tu és rio de ti?
Notícia
Me contaram uma vida tão triste, será que é a nossa? Um eu que dizia "eu me exilei de mim porque me tornei um lugar de tortura. Dentro de mim ficou vazio e sacola de compras. Nenhum bilhete porque não soube o que me dizer. Eu esqueci a minha língua. Queria mesmo comprar o direito de voltar pra casa: eu que sou de uma humanidade tão moça, com toda a vida pela frente e poros pra trabalhar. Aposentaram minha humanidade por invalidez? Pensei em te pedir abraço, mas, meu Deus, e se o teu abraço me convida para ser? E se eu me afogo nessa nova atmosfera?
Separação (Carta para minha enfermeira)
Amor meu, parecias menina-moça, assustadiça de seu primeiro sangue. Dissecou-se o Vosso corpo de sob a minha pele, amor de minha vida, à nossa revelia e à vigência de nossa virgindade. Era pra ver a causa de até que a Tua morte nos separe. De que mesmo morreste a Tua morte de nós? Não olha pra mim. Não me avassala de tanta denúncia. Me devolve as pálpebras para que eu as aperte em torno do tumor dos meus olhos. Me deixa trancafiar as retinas. Já é tarde, um gosto de olho já me amarga o peito. Remove este fel que me percorre. Eu peço clemência a quem quer que seja. Quem fechou a torneira de ar do meu mundo? Cala a boca desse arauto insistente, devolve a luz da minha garganta até que eu não mais escureça.
Saudade asfixia tanto assim? Saudade dos dois segundos antes. Antes de perder-te, amor de minha vida. Corpo lânguido e plácido que eu tanto amei. Viúva e defunta, eis o que sou, e nem mesmo me sobeja força para acompanhar meu féretro. Por que foste tão pouco e te amei tanto? Te traz de volta nesse eco do meu rastejo... nem que seja um naco... uma farpa... um último gole... nem que seja fel-doce...
Será que existe sabão ou antídoto, prece... ou cicuta? Amálgama das minhas carnes, não te descoles levando a pele dorida deste que me pulsa. Não me deixes contorcida e inerme. Por que eras tão pouco, minha enorme falta? Não te degredes de mim, amor trânsfugo. Empresta-me um dedo, eu vou enfiá-lo na garganta do tempo. Nem mais um grão de minha vida darei à goela das ampulhetas. Devolve o visgo do útero que me alberga. Dá-me calor e água. Dá-me intumescência circundando os meus contornos. Dá-me defesa. Dá-me um vomitório, pelo amor de Deus.
Até que não sobre nem o nada, que eu me regurgite intensa e inteira, dá-me a benção de abolir-me de ser. Eu quero me erradicar da ordem das coisas. Não quero um álibi que me salve, quero a condenação irreversível. Onde devo depositar o meu último deitar-me? Alguém me estanque de me perder tanto. Me tragam bandagens quentes, um curativo compressivo, alguém me impeça de verter minha última sede. Alguém me salve, me cuide, me reensine.
Houve alguém. A enfermeira das bandagens internas. Bandagens de palavras. Emplastos de mãos entrepostas e lágrimas comungadas. O silêncio e o sangue suportados a duas humanidades. Foste a fresta grávida de horizonte na ausência de janelas. Que varredura íntima empreendemos. Quanta página em branco no livro já escrito. Quanta erosão nas cores estagnadas, quanta ilusão nas flores desabitadas.
Que dor, amor meu, o peso de não ter-te, morreste do desanunciado da certeza interna. Eu orei junto à minha enfermeira: Senhor, abre no meu cerne uma mangedoura para o amor. Fende, Senhor, as vastidões compactas do meu medo, inaugura Tua nascente. A dor me deixa eloquente: é difícil até que eu ouça o meu calar: a vida então fala em mim porque a minha fala é pequena. Meu silêncio é a mangedoura das novas palavras. É preciso que eu cale a boca, que eu feche os olhos. É preciso alargar a pelve para a passagem do sagrado. É a experiência do lancinascente. Lancinante? Nascente.
Deste-me aos braços a minha pequenez. Eu te acalento nos braços, pequenez amada que sou. Pequenina matriz trêmula dos meus passos e pequenino prenúncio alegre do que ainda não sou. Pequenez querida que nino junto à tua e às todas nossas. Existe um todo que nos acalora. Existe amor que guia nossa aparente incoerência. Queria que minha enfermeira coubesse nas minhas palavras, mas ela não cabe nem nas dela. Algo maior veio urgir de encontro a nossa pequena carne. Se eu pudesse pinçar um instante, seria este: o inspirar lento e o fechar dos olhos, tempo para que os sentimentos de acomodassem nas palavras. Olhos redondos, pasmos do encantado da vida...
Solidão, vasto vácuo descomunicando-me a mim mesma. Terá ficado a minha voz do outro lado do deserto? Quase não me ouço e é quase que a minha coerência me abandona. As vacuidades são moças grávidas. Tenho poros urgenciados pela ânsia de viver. Me extravaso e me recompilo. Sou em curso. Sou aos goles, vou me bebendo paulatina do copo da vida. Sou aos haustos. A vida se me insufla às lufadas. Existir é aprender a ser pulmão, é o alargar das mucosas, é rebalizar as pleuras. Sou-me uma coletânea de percursos inter-multiplicantes. É preciso com fé desconstruir os claustros? E construir outros? Não. Construo uma casa feita do cimento das asas.
Visionário? Não, é a exacerbação do olhar, é a beleza redesvirginando as retinas. Como é lúbrico vi-ver a sensualidade do porvir seduzindo o comezinho dos dias, como quem ama na segunda de manhã. Estão batendo na porta. É uma arauto do Afago do Todo...tem um bilhete..."eu te trouxe um buquê de cotidianidades". Põe na mesa, não espera, enche os olhos desse agora, permite o erógeno das narinas, refestela tua sanha de amar mais. Mata a tua sede nesse copo de simples. Será que sempre existiu um sol escondido na sempre-viva da calçada e eu nunca vi?
Ah olhos imberbes.Hei de incutir-lhes a maturidade até que cresçam o bastante pra puerilizar a vida. Quero aninhar as latências durante o estio, quero aguentar o inverno, quero erigir no cio. Quero renunciar a beleza para ver a candura. Renuncio à beleza das cascas e das camuflagens, quero a beleza das carnes crescendo desde dentro. Por quantas avalanches de sangue passaste, chaga amada e tez dorida do eu que sou? Como é linda a sua pele rugosa e cicatricial. Eu não quero a lisura, quero a insígnia cutânea da minha auto-militância. Quero o registro dos meus passos. Quero o mapa do meu me amar. Falo demais do eu? É que eu precisei descer meu poço pra te oferendar água, é só assim o dar de beber ao nós.
Sou amor e acervo. Desgarroteei o meu verso e a minha voz, pavimentei a mim mesma um chão de sementes. Quero esticar-me até a minha última complacência. É do diâmetro da minha dilatação que eu predico a vida. Eu, nudez tanta, quantos dedos já me cabem? De quantos dedos estou nascendo hoje?
Poema para Cibelle
Tire da bolsa retalhos de acaso
Borde lantejoulas, perfume com alfazema
Jogue do telhado nacos de poema
Como quem alimenta pombos e pessoas
Tire da bolsa noites risonhas, luares largados
Deixe o tempo ornar de tempo
O amor dos amigos, o sem-ar dos namorados
Sopre na modorra do vento mechas longas de palavras despenteadas
Dessas que se escondem quando a gente não cabe em tudo que sente
(Falei pra não por peso na palavra que ela rasga
palavra é mesmo bobagem, palavra rasga à toa)
Tire da bolsa gestos morenos, afagos de canela
Dance com os olhos magias castanhas
Desfile rubores, vestidos, quenturas
Tire da bolsa a poesia mais bela
Tire a vida que inventa, a menina que tenta
Que a noite já vestiu sua pele negra
seus colares de astros, seu perfume de segredo
Pôs à mostra sua tatuagem de lua
(noite é mulher e incandescência)
Ah menina, experimenta
Olha a lua tatuada molhando a gente de estrelas lentas
POEMA PARA VIVI
É outono
O chão está coberto de palavras caladas
Perdi folhas e flores, peles e nomes
Dou-me aos ventos que me despem e que me trazem essa nudez nova e paciente
Eu não tinha esse frio, esse medo
Nem esse milagre
Não tinha esse farfalhar quebradiço de ramagens idas doendo em sementes que não sei
Me aninho em bicos de beija-flores nômades e de que outras flores eu serei?
Eu não tinha essa fenda no tronco, essa seiva supurada
Não tinha esses galhos trêmulos, esse ninho arrancado
Nem essa certeza estranha de que a dor me elegeu para uma outra mansidão
Não tinha esse sol intruso e valente lambendo de luz
Esse meu cancro, essa minha fundura
Esse ensaio de flor doce e assustado
Eu não tinha essa paixão nas raízes
Esse amor, essa fúria
Não tinha essa angústia funda feito a felicidade
Eu não tinha e não terei, na minha orfandade de folhas
Esse algo que de tão meu me abandona
Terei apenas essa fraqueza de caules
E um coração pequeno plantado na terra tímida do peito
Nua e úmida para a fome de meu sol
Caminhada
Sou toda passos
Desenho ainda em traços grisalhos a cartografia de minha invenção
Escrevi longa carta pra mim mesma e derramo letras pra dentro
Meu longo poema acalenta as minhas costas gravetas, meus sentimentos arfantes
Chamo o sol para a minha janela como quem encanta de mansinho um colibri
Tudo é tão imensamente hoje
O sol tem dedos antigos na minha face
Fecho os olhos
afago, lágrima, garganta apertada
O tempo tem sempre mãos meninas
Já não tenho frio
Sou de meu lirismo
Mas, quando em quando, ah meu Deus
E se eu sentir medo?
E se eu pedir pra que amparem minha luz numa mão de criança?
Conto segredos ao meu xale:
Não sei porque em mim as rosas desabrocham tão vermelhas
Chuvinha
Meu silêncio tem tímpanos pulsantes que captam o inaudito, ouço latências
Esse silêncio entremeado às gotas de chuva lá fora
Acho que chove em meu dentro
A poesia, às vezes, é feita de chuva
Que me lava no avesso, me afaga as curvaturas, me acarinha as contraturas
E essa solidão feita de chuva, tilintando no asfalto, também rompe a sede da terra
Que cheiro bom de terra molhada
cheiro de semente germinada
cheiro de mãos entrelaçadas

florada de afetos

Dromedários

Eu ontem quis corpo. Eu ontem soube que cometi. Eu cometi um poro que pulsa. Cometi um eu quente. Eu cometi uma inocência que goza. Cometi ser na boca. Cometi o desbragado, o macio, e mãos tensas num lençol. Cometi ter poros. Cometi a mim mesma, eu que delituosamente me derramo nos dias. Que como, sorvo, me refestelo. Cometi amar minha inocência. Cometi amar minha angústia. Minhas lacunas. Meus hiatos. Sem recheá-los de deus. Não quero um deus saponáceo, de me remover sujidades. Quero o Deus belo, lúbrico, que me ame na minha alguma coragem de acessá-lO. Reivindico o Deus capaz de beijar minha voragem e de alar minha pequenez.
Depois de velha dei pra fazer travessuras. Dei
pra desinventar pecados e fazer de conta que hóstia é confete. Deus me olha
de
soslaio, faz que ri e não ri [só para não me dar "liberdades"(ô diacho de
menina
arengueira)]. Mas no fundo aposto que adora. Pois não é que tem gente
excomungada
que se põe a desintristecer Deus? Pai do céu me deixa inventar
um menino sem
pregos nas mãos e cheio de azaléias? Me deixa inventar um deus
que não adoeça de
nós e que me impeça de calar a alegria? Um deus menino
cabelo no vento, com
catavento, coelho e pipa?

Sou a apedrejável porque tenho sensações e águas ilícitas e joelhos lassos e largura de risos. E borboletas numa manhã toda invadida de cios.

Eu vejo semi-pessoas, vultos enfileirados e secos, com
silhuetas de pó embalsamado. A solidez e a impáfia de suas tristezas mumificadas, seus ex-seres soldadificados. Só eu
chorei porque eles não têm mais água. São olhos
vazados. Eles vazaram de si mesmos? Seus olhares são abismos craquelados, halos opacos de uma
fundura que se matou.


E meu corpo queria corpo. Eu tive sede e tu eras dique protegendo areia. Foi teu dique que te fez areia? A minha pele queria pele e tu, arcabouço vítreo. Tu pincelas esse verniz que mata? Que te remedia de ser um eu?
E meu crime foi amar ser um eu. Foi amar ter leite e precisar da tua boca. Foi querer tua beleza. Foi não abdicar do leite. E de ter a arrogância de jorrar por entre as gentes. Meu crime é ter esse humano úmido à mostra.
A tua ausência me seca, me rapta para essa urdidura de pó. Para se ser mais belo é preciso se ser mais só? Se a beleza é dueto, são riachos brincando. Queres proteger tua doença para não me amar? Pra não descobrir o leite que às vezes dói? E se o teu corpo desejar corpo? Tu te amputarás de ti mesmo? E se os teus mamilos te acordarem na noite? E se houver filhotes, hálito, saliva? E se, no beijo, ainda houver boca? E se ainda não esquecestes a sede? E se eu ainda te amar? E se eu ainda sofrer?