A moça
A moça que em mim as coisas afundam feito asas. Bela moça, com olhos de urdir funduras. Eram assim uns olhos sorvedouros, de adentrar vastidões.
E de poros. Dela se dizia "lá vai a moça dos poros grandes". Cada poro uma dilatação de parto. Ela tinha no mundo assim uma espécie de engolimento, um assomar-se de ser gente. Doía nas coisas como se elas fossem de pele. E amava nas coisas como se elas gemessem.
Era de poucas palavras. Parecia que o pouco que dizia lhe vinha de viagem tão funda que chegava na boca num murmúrio, num eco, num tornar semi-falado o que é penhasco. Era mais de viver no calado, enovelada em seus cios. Precisava do tempo, da dor e de indizibilidades para parir.
Também não era de dor desnecessária. Dor é coisa sagrada, andaime de gente para estrela. Mas de não morar em andaime, gente é para ser de alegria. "Muitas vezes a dor foi mãe da minha asa e me ensinou a não desperdiçar o céu".
Tinha mania de nascer. Ela se nascia toda, era de parir-se toda e de trazer para si uma vida mais sua, mais fincada na sua vontade. Ia assim se formando no espelho "nasço na intumescência das horas que jorram vida". Era placentária com tudo, umbilical com tudo. Era mesmo de uma espécie de jorragem humana.
Porejava desejo. Tinha uma espécie de febre, uma espécie de ignescência, uma incontinência de fome, um corpo de escândalo, ainda que calmo, ainda que tácito, uma fúria em flores miúdas. E laços de amar, abismalmente.
O mundo, às vezes, lhe lanhava ou lhe amava. Mundo é coisa que se atraca consigo, açoite e epifania. Um dia lhe caiu de cheio, num só poro, gatinho bebendo leite. Cria tão tenra que parecia parida de anjo. Dom com pelagem de bicho.
Outro dia foi mão gordinha de criança em rosto de mãe. E farelo de inocência. E frágil. Doutra feita, anoitecimentos, céu cravejado de silêncios acesos. Palco de sentir sem mordaça. Mulher nua amando, bonita feito lírio chupando a noite. Mulher com renda na pele e coração com frio. Depois, homem viril, todo nu e de amor doendo. Homem mesmo, desses de dizer de amor e ter ferida no flanco.
Era todo dia um novo alarde, isso de não sei dizer, uma coisa que come o nome das coisas e vira um latejo, uma prece, um não cabe na voz.
Outro dia foi menininho doente, de brinquedo quebrado e com febre nos sonhos. Todo lágrima na noite, sem ceia e sem cata-vento. A moça sabia que existir é uma espécie de penúria. O mundo lhe lançava farpa e pétala. Ô coisa esquisita que é mundo, agrura e afago.
A moça, às vezes, sobe à tona. Tem dia que é serenidade. Folha cochilando n'água. Casal de flamingos no sol. Florada de açucenas. Tem dia que é leveza: a moça em mim são pedaços de ar entrelaçados. Tem dia que é dicionário. Dicionário é assim um catálogo de alegria, um fichamento de risada. Falando em dia, olha o dia: é quando a luz esculpe no ar o milagre da paisagem. Palavra: é quando o escuro vira nome e nome torna a virar escuro (palavra é moleque que brinca de esconde-esconde). Coisa boa esse negócio de se esparramar em letras. Meu dicionário parece relógio que só funciona no sol.
Tem dia que é mergulho-queda-livre, queda assim sem intenção, como árvore que cai com saudades da sua terra, é assim um pouco morrer, se saber semente. Às vezes, tinha pesadelos, acordava sobressaltada falando com fantasmas "Ainda habita o teu âmago um olho que mareja?"Tinha medo dessa sua pele fina, dos gumes do mundo. Mais medo ainda de criar crosta, deixar de aninhar a solidão dos outros. Dizia para si mesma "Tenho de saber que sou desumanizável".
Esses poros pesados pendem dela feito peitos. Difícil dizer da sina dessa moça. Tão ingurgitada, coitada. Tão acontecida de flamas e faltas. Tão forrada de flagelo e canteiros. Se de tanto doer, finda. Se de tanto gozar, esplende. Se de tanto ser, cala.