segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A moça
A moça que em mim as coisas afundam feito asas. Bela moça, com olhos de urdir funduras. Eram assim uns olhos sorvedouros, de adentrar vastidões.
E de poros. Dela se dizia "lá vai a moça dos poros grandes". Cada poro uma dilatação de parto. Ela tinha no mundo assim uma espécie de engolimento, um assomar-se de ser gente. Doía nas coisas como se elas fossem de pele. E amava nas coisas como se elas gemessem.
Era de poucas palavras. Parecia que o pouco que dizia lhe vinha de viagem tão funda que chegava na boca num murmúrio, num eco, num tornar semi-falado o que é penhasco. Era mais de viver no calado, enovelada em seus cios. Precisava do tempo, da dor e de indizibilidades para parir.
Também não era de dor desnecessária. Dor é coisa sagrada, andaime de gente para estrela. Mas de não morar em andaime, gente é para ser de alegria. "Muitas vezes a dor foi mãe da minha asa e me ensinou a não desperdiçar o céu".
Tinha mania de nascer. Ela se nascia toda, era de parir-se toda e de trazer para si uma vida mais sua, mais fincada na sua vontade. Ia assim se formando no espelho "nasço na intumescência das horas que jorram vida". Era placentária com tudo, umbilical com tudo. Era mesmo de uma espécie de jorragem humana.
Porejava desejo. Tinha uma espécie de febre, uma espécie de ignescência, uma incontinência de fome, um corpo de escândalo, ainda que calmo, ainda que tácito, uma fúria em flores miúdas. E laços de amar, abismalmente.
O mundo, às vezes, lhe lanhava ou lhe amava. Mundo é coisa que se atraca consigo, açoite e epifania. Um dia lhe caiu de cheio, num só poro, gatinho bebendo leite. Cria tão tenra que parecia parida de anjo. Dom com pelagem de bicho.
Outro dia foi mão gordinha de criança em rosto de mãe. E farelo de inocência. E frágil. Doutra feita, anoitecimentos, céu cravejado de silêncios acesos. Palco de sentir sem mordaça. Mulher nua amando, bonita feito lírio chupando a noite. Mulher com renda na pele e coração com frio. Depois, homem viril, todo nu e de amor doendo. Homem mesmo, desses de dizer de amor e ter ferida no flanco.
Era todo dia um novo alarde, isso de não sei dizer, uma coisa que come o nome das coisas e vira um latejo, uma prece, um não cabe na voz.
Outro dia foi menininho doente, de brinquedo quebrado e com febre nos sonhos. Todo lágrima na noite, sem ceia e sem cata-vento. A moça sabia que existir é uma espécie de penúria. O mundo lhe lançava farpa e pétala. Ô coisa esquisita que é mundo, agrura e afago.
A moça, às vezes, sobe à tona. Tem dia que é serenidade. Folha cochilando n'água. Casal de flamingos no sol. Florada de açucenas. Tem dia que é leveza: a moça em mim são pedaços de ar entrelaçados. Tem dia que é dicionário. Dicionário é assim um catálogo de alegria, um fichamento de risada. Falando em dia, olha o dia: é quando a luz esculpe no ar o milagre da paisagem. Palavra: é quando o escuro vira nome e nome torna a virar escuro (palavra é moleque que brinca de esconde-esconde). Coisa boa esse negócio de se esparramar em letras. Meu dicionário parece relógio que só funciona no sol.
Tem dia que é mergulho-queda-livre, queda assim sem intenção, como árvore que cai com saudades da sua terra, é assim um pouco morrer, se saber semente. Às vezes, tinha pesadelos, acordava sobressaltada falando com fantasmas "Ainda habita o teu âmago um olho que mareja?"Tinha medo dessa sua pele fina, dos gumes do mundo. Mais medo ainda de criar crosta, deixar de aninhar a solidão dos outros. Dizia para si mesma "Tenho de saber que sou desumanizável".
Esses poros pesados pendem dela feito peitos. Difícil dizer da sina dessa moça. Tão ingurgitada, coitada. Tão acontecida de flamas e faltas. Tão forrada de flagelo e canteiros. Se de tanto doer, finda. Se de tanto gozar, esplende. Se de tanto ser, cala.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Poema desabrigado
Minha asa é a minha casa.
À procura
Estou perdida e sagrada como o amparo de uma dor.
Comezinha
Quero ser comezinha como o milho dos pombos enfeitando os caminhos
Como a preguiça das jabuticabas descansadas num chão coalhado de pés meninos
Como bolo de fubá esfarelando em mãos calejadas de há tanto tempo amar tanto
Como redes morosas, ninando os corpos no sagrado das varandas
Como pipocas numa tarde ontem
pululando sonhos
dizendo infâncias nos olhos das crianças das minhas saudades
Como o amor das folhas recém-amadas pela chuva
Como banho de criança, ô coisa bonita
Algumas coisas são minhas demais
Hei de um dia ser comezinha como o amor de um aceno

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Encontro

Armada de minha nudez, eu milito contra o plástico. Armada de minha nudez, dos meus poros quentes e sedentos como os teus. Solidão, um fosso aberto no lugar da placenta. Enigma sugante e escuro no lugar do chão. Gente dói. A morte e o gume de suas amputações. Sabes quando choras até esvair-se em ser? Quando vomitas um pé e um chão? Quando vomitas um órgão ermo que, nem sabias, habitava o teu estômago? A vida tornou-se sedenta como uma população de giz. Quando não há oásis a gente aprende a ser cáctus? Incursiono pelas minhas profundas aléias e te trago um buquê entretecido de flores tão apaixonadamente minhas.

Tu tens medo de dar-me a mão? Sei que te falo de um jeito que te arrasta cá para as funduras. Tenho palavras afundadoras, eu sei. É que este é meu habitat natural e para cá te convido. Dá medo, mas é tão lindo, tu nem imaginas. Ou será que já o sabes? Aqui a gente é de lupa nos poros. A gente sente, avassaladoramente. A gente escuta a correnteza do íntimo vinho em seu incansável curso, banhando as entranhas. Um mar vermelho e suas vivas estocadas. Escuto a toada da tua existência em confluência com a minha. Quando estou aqui, sou-te e és-me numa mesma entrepele. Namoro silente o halo amoroso do teu olhar. Percebo quando o ângulo frágil da tua retina se crispa dizendo de dores no teu profundo. Ou de perplexidades. Ou de sentimentos indecifráveis. Sei quando me pedes porque é daqui que eu te preciso tanto. É daqui, amor, que um humano nutre outro humano. E a tua face fica tão linda. O bom do teu abraço fica tão intenso. Me deixa falar. Me dá do teu encontro. A palavra me desinibe e apraz-me ser na tua frente.

Psicologia

Eu fiz Psicologia. Inacomodável em palavras. Noites de espírito em polvorosa, alma fermentada de tantos saberes, seres e gestares. Ser psicólogo é fazer de si mesmo um lugar de encontro com o outro. A cada instante já não sou mais eu. O outro rebenta coisas no meu caule, se me enxerta. Eliciei um eu de sob a dor e o amor dessas carnes que me deram para que eu nelas acontecesse um humano. Carnes que me chamam de eu. Ou será que me perguntam o que é eu. Ou será que se me oferecem por trampolim em que chego à tua carne, a um só tempo, distante e tão feita de mim? Estranha e estrangeiramente minha. Foi de meu amar... Eliciei-me de meu amar: o dar de mim, germinal de mim. Dar de mim é, antes de tudo, receber-te. Ah, o ventre das coisas é redondo e teso e brilha como quem gesta o sol.
Me amor
Eu vou para o meu fundo tomar sol. Não aguento ficar engavetada à luz do dia dos homens. Quero um sol de poema. Que vontade eu tenho de viver. Volito desejos num céu de acaso. Deixo que me caiam na face flocos de devir. Abro asas e sortilégios numa amplidão de esmo.
Preciso aprender com a arquitetura eflúvea das nuvens, é macio que deito sobre elas o meu olhar. Essas distraídas transeuntes do céu. Passeiam brancas a sua elegância de ar, noivas de ar, caminhos de chuva. Quero aprender a beijar intempéries, a me inscrever numa essência vindoura, quero passar pelo tempo e nele deixar saudades. Aninhar-me na cadência dos meus passos, eu transeunte de mim, eu nuvem de mim. Caminho porque estou comigo e amo o meu passo. Sou serva de minha história. Serva de minha propulsão. Serva de meu Maior.
Indivíduos
Como ser, sitiados no campo de concentração individualista? Cada um, respeitável e digno, em sua privativa câmara de gás. Cada um de nós, operário da fábrica de holocaustos. Eu chamo de impossível um outro possível que a minha mesmidade aborta?
Capitalismo II
As tuas verdades "mocinhas". Nossas. Augustas e pias, pudicas e castas. Despudora-as. Conta-lhes sobre certas coisas. As verdades querem saber as verdades. Tu tens um rosto ou tens colado à face um outdoor sedutor que te vende a ti mesmo e abafa a mendicância da tua pele a quem cimentaram os poros? Chamas de cetro a marquise que te erigiram por lápide? Chamas "certidão de identidade" o manifesto que anuncia a tua incívica e desumana existência? Quem são esses médicos que consultas para que te façam autópsia? Ah, tu nem consultas. Apenas te sonhas são. Sei como é. Eu mesma faz horinha que acordei e só tomo café se for contigo. Adoro café.
Receita
Busco coisas na antiga casa
fechada, cheirando a silêncio agridoce
na cozinha, os azulejos me reverenciam enlutados,
vexados pela não lágrima
eu precisei chorar só
é que não há mais no fogão a gordura das panelas e o vapor dos doces fumegantes pra que lacrimejem comigo
essas despedidas sempre têm gosto de supermercado por fazer
deve ser porque a gente é meio como tabuleiro de cocada
às vezes recebe uma avalanche quente e branca, ardendo na alma não previamente untada
pra depois ser espalhada pelos móveis nas mãos gordinhas das crianças
farelos de açucar sorrindo nas mãos delas
talvez a vida seja uma receita de pão-nosso-de-cada-minuto
Amor meu
Escrevo de olhos fechados
mas eles se entrecruzam no meu cerne
e deito-me sob a minha própria torrente
ávida e saciada, deleito-me em meu próprio néctar
amamento-me de mim
meu leite craveja-me fresco, feito onda de mar: sou-me nutriz
Minha suavidade me afaga o rosto, brisa rósea como mamilos tenros
no escuro de meu eu, me envolvo em pétalas novas e me desvirgino ao sol
sou o inconcluso que a luz descerra no vagar crescente e delicado de viver
minha fome também me sacia
e sou a gratidão comovida de si mesma
a aleluia emocionada com os além-luas...
Sou somente o palco em que a universidade brinca, dentro e fora de mim
sou mais que o labirinto de espelhos em que ela brinca de se achar bela?
espelhos são testemunhas privilegiadas
enlaço-me, sou meu abraço e meus poros se enternecem no êxtase de beijarem-se
essa transpiração me pertence, meu amor me pertence
me pertence grande como a vontade de dar-me a ti
Milagre
Porque Deus pervadiu-me
Eu, litúrgica, emano poesia
Hóstia-palavra, sacramentai minha ânsia de amar
Vejo chagas nas mãos do altar e elas se amoldam às minhas e me sangram alma à dentro
Augustas e silentes, desse silêncio gritante que abafa o som do meu medo
Sou afagada nas mãos tesas e úmidas e transfundida
Alarguei as artérias de minha fé e nelas me consubstancio amor
Então ouço o marulhar dos meus odres já esquecidos dos dias de secura
Me avassalam os mistérios da flor d'água e me ordenham do rosto essa não palavra, esta não pergunta
chovendo nas lavouras dos milagres
Perguntação
Por que é que essas minhas entranhas inconfidentes me obrigam a ser?
Que boca é essa que me devora e estranhamente me alimenta?
Que gume é esse que me amputa e me rebenta mil tentáculos?
Que cio clandestino é esse que me engole e me excita?
Que crateras são essas que me vomitam pra dentro de mim?
E meu sono intranquilo é pra pulsar?
Feito uma castanha indômita, trancafio o tenro
Iridesço nos meus subterrâneos
Da minha grande sufocação, auroresço
Da fome da noite, a manhã

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Pensamentos
Numa cadeira antiga, uma tarde antiga
Pendo distraída o frescor das minhas mãos
O tempo, silencioso, bordou rugas nelas
Como quem cose uma roupa para a festa de amanhã
recebo o abraço de minha história
Tropeço em pedaços cada vez mais pesados de tempo
Já não ralho com eles, são netos traquinas e amados
Hasteei no vento anéis de cabelos e buscas
e apanho no espelho novelos de prata e calma
Ou de pasmo ante a Grandeza?
Entesourada de mim, de meus passos
e da minha caudalosa incompreensão
Que sou eu senão o vácuo entre a palavra e a fome?
Distendo minha ternura ao rodapé do pergaminho
como quem cobre um filho amado no berço
Minha alma um dia se alará, repleta do que desconheço
e meu corpo então será casa de açucenas
Insapiências
Cá estou eu coração abaixo. E o ventre da palavra está seco. Sou o mapa que não sei e o abismo que não aguento. A realidade flutua sobre a escuridão, nata que entendo sobre o leite que não entendo. Emito tentáculos. Íntimo manuseio de angústias. Cerâmica de sombras.
Sou a que despenca. Sou a tala vergando sob o peso da fratura. A que mastiga pedaços de escuro, estranha hóstia. A que abre a boca para receber a Grande Fome. A que vomita na ribanceira das palavras um revés de discurso. A que grita até rebentar todos os diques da garganta: é preciso sangrar todos os sons, para, enfim, cicatrizar. A que se esgota. A que se esgueira nos vãos do Nada. A que pede na noite. A que suplica. A que se craveja de unhas roucas. A que.
Mas ainda quero. E se esse escuro me pulsa? E se poreja galáxias e se eu intuo lasciva pétalas na vertigem? Sinto cheiros e angario delícias invisíveis. Obstinadamente humana, nanquim e cio.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Carta para a pianista
Será que o abismo é só o céu de cabeça para baixo? Será que os buracos são estrelas vestidas de escuro? Será que se eu escurecer vou saber que sou estrela? Ou a vida é um mosaico de céus esburacados e abismos enluarados? Vou saber me brilhar?
Tenho tanto medo de ser intensa. A minha intensidade pode me deglutir para um estômago de mistério. Eu peço que minha intensidade me ame longamente. Será que voo é o nome do meu repouso?
Passo horas deitada, chorando, vertendo de mim as torrentes dessa coisa irrepresável que me governa. Sei que o mistério me abraça e me amamenta. Eu preciso amar profundamente. Vergo sob o peso dos meus sonhos maduros e de acontecimentos verdes. Mas eu amo nessa irresolução. Irresolução e chamamento. Amor é o nome da minha realidade. Estou me abraçando tão forte que sinto que estou salvando a minha vida. Será que eu aguento me salvar tanto? Cabe no meu corpo esse amor tão vasto? Peço que ele se me ventile em lentos haustos. Uma minúcia de amor é caudalosa demais para um humano.
Impetuosamente amo a minha paciência. Eu afago os meus pés para que eles caminhem devagar. A estrada alada os caminhará por mim. Me basta a entrega? Me abasta a confiança que amar me rege. Eu quero que o meu medo me ensine que mereço a minha coragem. É certo que eu desnecessite de coisas certas? Estou certa de que me desgoverno para que o sagrado se me instaure. Eu me apresento para sediar Algo. Sou feita de Algo e esse é o meu destino. Algo é o nome do amor? Estarei aquecida e amada com a quentura inquestionável das coisas sagradas. Ama-me baixinho como a um filho frágil. Talvez eu caia do berço para voar. Talvez eu sangre nas asas. Talvez a asa me ame tão forte que me leve alto para onde sou.
Eu tenho medo de altura. Da minha altura e da sua. Me deixa te abraçar forte. Me deixa despencar ao teu lado. Seguro a tua mão forte para que caiamos sobre a estrela mais bonita e a nossa queda, eu sei, vai desfiar penugens de luz. Mas será que voar dói?
Pode ser somente amor. Pode ser alto como uma face amada. Pode ser um silêncio último que só uma beleza tão fulgente pode orquestrar. Vou desafinar o meu instrumento na tua frente para te tocar. Porque amar é a única música que importa. Vou peregrinar por entre os acordes de uma música insabida e insólita. Eu sou a música das minhas insuficiências e da minha amorosa condição? E a tua cadência nos convidará para a dança de nossa inexatidão. Nossa dança é secreta como o útero das emoções. Amar precisa de coreografia? Precisa que eu seja e que tu sejas. Precisa que eu deixe de precisar de coisas que não preciso. Amar é minha única precisão.
Melodicamente vou desafinar para entoar no teu íntimo os meus acordes possíveis e o descaminho dos meus silêncios. Eu sei que mereço a carícia do teu ouvido. A minha beleza precisa da minha dissonância. Será que o meu amor caminha justamente nas aléias acústicas das minhas dissonâncias? Tenho força o bastante para ser balbúrdia de sons? Cola o ouvido na minha pele para me ouvir: eu não sei fazer silêncio nos poros.
Tenho olho que aguente ver as coisas que são metade coisa e metade abismo? Eu aguento sentir na pele o desfazimento das minhas hipotéticas certezas? Eu me radico num terreno de intempérie em que dá uma flor tão bonita, de pétalas imprecisas como se fossem chamas de vela, não se sabe onde termina a pétala e onde começa o ar. Eu preciso ser indelimitada para saber o que me circunscreve. Preciso que as flores luminesçam a minha primavera interna.
Abraço os meus esvoaçamentos, meu esboços. Minha escrita é condenada a ser garatuja de uma escrita vindoura? Assino com letra indelével que "eu amo", gravo o meu nome em pesadas tábuas de éter que só uma matéria de éter é capaz de esculpir. Sou uma lamínula diáfana e frágil porque voar pede delicadeza. Sou frágil em nome da minha reverência? Fragilidade é o desnudamento da minha coragem? Fragilidade é o nome que dou à minha entrega? Amar é uma névoa que opera em segredo o frágil das coisas? Frágil é esse nome sem pele da vida que ainda confia que sabe abraçar a si mesma? Frágil é o nome pungente e alado do amor? Eu caminho sem pele pelas aléias do meu sonho porque preciso de uma vestimenta sagrada. Não quero que ela me vista, quero que ela me ame fundo como a confiança de uma cegueira.
A minha nudez há de robustecer a minha transparência e a minha irmandade. Irmandade é a consonância de todos os que excursionam para o sagrado? Irmandade é eu desembocar tão desmesuradamente humana no teu sendo que é também o meu? Irmandade é eu te ser tanto?
Eu me temo porque quem sabe se eu sei nadar no mar das minhas intensidades. É que um dia me afoguei. Me afogar foi o jeito desajeitado com que o mar me contou seu tamanho. Será que o mar sabe que só consigo enxergá-lo indecifrável? Ou a água vai ensinando a minha pele a também ser mar? Eu esqueci a minha liquidez e agora a rememoro à medida que desvirgino as águas com minhas braçadas assustadas? Eu esqueci a minha sereia identidade? Talvez o mar me ensine a ser eu e eu o ensine a ser mar.
Trafega nas minhas artérias uma rubra turbulência. Um caldo de framboesas ardentes retumba uma circulação de caos candura. A vida é vermelha como um desejo e eu crepito nessa ignescência de palavras. Albergo o entrechoque das minhas emoções convulsas, eu só sei me ser contrária, eu me atraco comigo, me sou veneno, me sou antídoto. Não sei concatenar a minha margem com a minha outra margem e sou um rio desalinhado e anárquico, mas que pulsa seu curso. Eu não concordo comigo e é essa a minha possível serenidade. Talvez seja esse o jeito torpe da vida me ninar para que eu nasça serena.
Viver é essa coisa que afoga que afaga que impede que impele que pausa que pulsa desmorona emociona cala fala responde esconde mata arrebata. Eu sou no entremeio dessas coisas? Que vexame eu ser de pele! Preciso ser para continuar viva.
Por que me julgo e me promulgo severas sentenças? Eu interdito as minhas veredas com os meus veredictos? Sou só gente-pedaço-de-realidade, pequeno pulso vibrando o pulso do mundo, pequena parte tentante sorvendo possibilidades. Minha ânsia de amar me advoga e me absolve. O outro me ataca e me acomete? Ele está empunhando as suas verdades meninas para me contar assustado do seu frágil? Não inunda a nós todos esse humano que parece uma infância incurável? Ficamos inflamados e graves, defendendo veementes as nossas verdades de brinquedo. Ás vezes tenho vontade de rir de nós com amor, com o amor doce de quem surpreende crianças brincando adultezas.
Eu preciso estar certa do que o outro, como o outro, porque o outro? Nada mais preciso senão amar e só o amor me ensinará a crescer dentro da minha infância. Serei, até a velhice, dessa pele-infanta-existência e tenho de brincar de me amar de verdade. Invento uma genial brincadeira de ser criança abraçada, amada, nutrida. Quando ficar velhinha, vou brincar de uma alegria que só a sabem as meninas- velhas. Haverá brinquedo e guloseimas nas minhas rugas. Haverá, como todo o sempre, fragilidade e abraço.