quinta-feira, 28 de maio de 2009

Le temps
Penso no tempo como o que nos tatua de nós mesmos e inventa peles.

domingo, 24 de maio de 2009

Trancafios


Quero escrever um ato vazio. Janela esfaqueada no peito pra um sol de ébano. Peito-correnteza, peito do leite doce dos silêncios. Coração ternura triste, arrastando vazio por todo o corpo. Nenhum dique de luz. Jorragem. Travessia de escuros. Viver é desanúncio. Escuro é templo. Me escondo numa poça recôndita, numa víscera até pra mim longínqua, tranço tranças de escuridões elásticas, me amamento no arrepio dos nadas. Colho no vago o comer das minhas esfinges. Não quero resposta. Quero um caldo que me venha da angústia, que me abençoe as fissuras, me apascente os desfiladeiros. Quero hoje ensolarar-me de ser só.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Des-venda-me
E se as marionetes descobrirem que têm poros do tamanho de vitórias-régias?

quarta-feira, 25 de março de 2009

Poeta
Quando o poeta acordar
suado e sem rima
Largado e lasso nos lençóis sem métrica
nas estrofes desgrenhadas
Pálido, calado, caiado de lirismo
corpo molhado de entrega,
coração texto nu de linhas nuas
amado demais
dessa coisa indiscursável de quando alguém dá de amor a sua solidão
...
Dá-lhe um pão de centelha quente e branco
Não passa não a manteiga das palavras
Silencia, poeta
Incêndios
Adolesço femininos
Ser mulher é missão de ignescência
Abro a janela para que o hausto do dia me beije
Tão bonita a vida ardendo o dia
Flamejo
Tenho dentro um vermelho de filhos
Verto lava quando se me revoltam as fertilidades
Segura a minha mão, eu vou te gritar nascimentos
Meu trabalho é de parto, reparto, desapequeno o possível
Amo
Subo no telhado do mundo pra pulsar no vento
Quero meu cabelo assanhado
Receber lufadas de devir como uma rosa-dos-ventres
Girar ao sabor das minhas natividades
Há de ser amoroso, há de ser belo, há de ser "entre"
Estou tão amorosa que o meu peito se constringe
"Entre" é pulsante demais
Adormeço, sangro
Meu leito é o mundo no peito

terça-feira, 24 de março de 2009

Lentos
Quero amar lânguida, demorada
Demoro a minha nudez nas tuas mãos ubíquas
nas tuas mãos ilegisláveis
Arrebento a língua, empurro, esmurro a redondez de um poro
A boca convoca os pelos
Persegue os côncavos
desliza, arranca um grito
Cala, crava na pele
um desenho de hálito
Tatua o teu cio
Broto sucos, relevos, hasteio penugens
Ardo, urjo, insisto
Visto voragens
Mordo o teu corpo
Com a abundância de uma letargia

terça-feira, 10 de março de 2009

Poema de quem cala
To com o coração mais asa que peito
Só, calada, funda
E o meu degredo é esta beleza
Tudo quietinho
Clave de sol beijando o silêncio na boca dos pássaros
Tudo o que dorme em riste
Há cardume de brisas soprando os cios do lago
As borboletas em prece
Todo canto é pétala
Todo nada é nascedouro
Vasculho o avesso de mim e espalho sementes de centelha
Ausculto o adormecido das coisas florescendo
Tenho uma primavera no ventre
Preparo veias e ancas
Minha santa parideira
Também eu nasço na inflorescência dos instantes
Quero nascer miúda, sem grito, sem alarde
Quieta, como o balé das pétalas adolescendo o botão
Quieta, como o chão amando as sementes, fundando os jatobás
O mundo foi mesmo feito de uma beleza exagerada
Tenho fraqueza, não presto pra ser gente
Sou súdita dos meus olhos

segunda-feira, 2 de março de 2009

A mão
O homem tinha uma mão imóvel, fazia anos. O médico lhe dissera tratar-se de AVC, sigla morta para uma mão morta. Era uma mão feia, arroxeada, pesada. O homem a esquecia tanto quanto ela o esquecia, se assim o era.
Tinha uma vida grande, com grandes cascas. A empresa ia bem, lhe chegavam aos montes ramalhetes de cédulas. Comportava em si um catálogo respeitável no que tange à cultura, títulos importantes, insígnias. Ninguém podia acusá-lo de não existir, afinal, ele havia se vestido. Os que lhe falavam o faziam com os olhos baldios, apoucados, débeis. Enforcando as paisagens, semi-vendo, semi sis.
Sua família era "estruturada", luminosa mesmo. Tinha uma mulher linda e solícita, que o encarava pouco nos olhos, é verdade, mas, enfim, era seu o aquiescer.
Tinha muitos amigos. Mornos. Os copos para os brindes, os sorrisos para as fotos, os meios-olhares. Uma bela casa, protegida por circuitos de TV, equipes de segurança, apólices vultosas. E axiomas, muitos. Era preciso robustecer a tristeza. Era assim o que se chamava de beleza, os espartilhados. Desde há muito, o homem chama a sua dor de poder.
E aquela mão insistente. Mão morta, sísmica, muda-esbravejante. Era uma mão alma-penada, tinha convulsões, socava-lhe o peito "Eu te atormento para que pulses, eu estapeio a tua fúria amorosa de sob o rijo da tua superficialidade". Mão de disparar impropérios "Prefiro sentir teus estilhaços do que essa tua organização morta". Era violência, mendicância a mão que queria, às vezes, um pires de leite. Não raro amorosa, mão de dar, mão de pedir "Ainda tens carícia?" Confidência, arrastamento, sangue. Mão de criança, pele fina, chorosa "Eu preciso morar num afeto longo, preciso do tempo e seus dedos macios. Eu chamo o tempo de mãe?"
Não era afeito a espelhos esse homem. Quando, por acidente, um espelho o raptava, se contorcia, esquivo de si mesmo. Não lhe chocava tanto aquela sua palidez, aquele seu desviço, seu horror era daquela mão que estranhamente brilhava, evolava centelhas. A mão tinha a força de todos os sóis.
Era abrigar em si uma dissidência, uma tumescência estrangeira. Diabo de mão desapaziguada. A mão que não fazia parte, indócil, mão de apontar outra vida, outro possível. Obstinadamente imóvel, sua militância. Protesto. Ficava ali quieta, amealhando a si mesma, a sua sensibilidade particular.
O homem, mentalmente, amputava essa mão. "Que quer dizer essa fenda, esse vazamento? Tinha medo dessa sua grande força, dessa mão iara encantadora de marujos "E se nessa mão houver delícia?", "E se eu amar minha maldição?" Tinha medo de seu precisar humano, pequeno, fustigante, que medo dessa sua miríade de cores, dessa beleza, desse Maior incontido, essa hemorragia de felicidade, dá-me parar de ser, precipício de luz, de Vida, ser divino é morrer demais e se viver demais mata?
Ouvi falar que a mão, um dia, matou o homem. Para viver, muito do homem é lápide. Ouvi dizer também que o homem, um dia, a pediu. Já era hora de uma espécie de casamento.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A moça
A moça que em mim as coisas afundam feito asas. Bela moça, com olhos de urdir funduras. Eram assim uns olhos sorvedouros, de adentrar vastidões.
E de poros. Dela se dizia "lá vai a moça dos poros grandes". Cada poro uma dilatação de parto. Ela tinha no mundo assim uma espécie de engolimento, um assomar-se de ser gente. Doía nas coisas como se elas fossem de pele. E amava nas coisas como se elas gemessem.
Era de poucas palavras. Parecia que o pouco que dizia lhe vinha de viagem tão funda que chegava na boca num murmúrio, num eco, num tornar semi-falado o que é penhasco. Era mais de viver no calado, enovelada em seus cios. Precisava do tempo, da dor e de indizibilidades para parir.
Também não era de dor desnecessária. Dor é coisa sagrada, andaime de gente para estrela. Mas de não morar em andaime, gente é para ser de alegria. "Muitas vezes a dor foi mãe da minha asa e me ensinou a não desperdiçar o céu".
Tinha mania de nascer. Ela se nascia toda, era de parir-se toda e de trazer para si uma vida mais sua, mais fincada na sua vontade. Ia assim se formando no espelho "nasço na intumescência das horas que jorram vida". Era placentária com tudo, umbilical com tudo. Era mesmo de uma espécie de jorragem humana.
Porejava desejo. Tinha uma espécie de febre, uma espécie de ignescência, uma incontinência de fome, um corpo de escândalo, ainda que calmo, ainda que tácito, uma fúria em flores miúdas. E laços de amar, abismalmente.
O mundo, às vezes, lhe lanhava ou lhe amava. Mundo é coisa que se atraca consigo, açoite e epifania. Um dia lhe caiu de cheio, num só poro, gatinho bebendo leite. Cria tão tenra que parecia parida de anjo. Dom com pelagem de bicho.
Outro dia foi mão gordinha de criança em rosto de mãe. E farelo de inocência. E frágil. Doutra feita, anoitecimentos, céu cravejado de silêncios acesos. Palco de sentir sem mordaça. Mulher nua amando, bonita feito lírio chupando a noite. Mulher com renda na pele e coração com frio. Depois, homem viril, todo nu e de amor doendo. Homem mesmo, desses de dizer de amor e ter ferida no flanco.
Era todo dia um novo alarde, isso de não sei dizer, uma coisa que come o nome das coisas e vira um latejo, uma prece, um não cabe na voz.
Outro dia foi menininho doente, de brinquedo quebrado e com febre nos sonhos. Todo lágrima na noite, sem ceia e sem cata-vento. A moça sabia que existir é uma espécie de penúria. O mundo lhe lançava farpa e pétala. Ô coisa esquisita que é mundo, agrura e afago.
A moça, às vezes, sobe à tona. Tem dia que é serenidade. Folha cochilando n'água. Casal de flamingos no sol. Florada de açucenas. Tem dia que é leveza: a moça em mim são pedaços de ar entrelaçados. Tem dia que é dicionário. Dicionário é assim um catálogo de alegria, um fichamento de risada. Falando em dia, olha o dia: é quando a luz esculpe no ar o milagre da paisagem. Palavra: é quando o escuro vira nome e nome torna a virar escuro (palavra é moleque que brinca de esconde-esconde). Coisa boa esse negócio de se esparramar em letras. Meu dicionário parece relógio que só funciona no sol.
Tem dia que é mergulho-queda-livre, queda assim sem intenção, como árvore que cai com saudades da sua terra, é assim um pouco morrer, se saber semente. Às vezes, tinha pesadelos, acordava sobressaltada falando com fantasmas "Ainda habita o teu âmago um olho que mareja?"Tinha medo dessa sua pele fina, dos gumes do mundo. Mais medo ainda de criar crosta, deixar de aninhar a solidão dos outros. Dizia para si mesma "Tenho de saber que sou desumanizável".
Esses poros pesados pendem dela feito peitos. Difícil dizer da sina dessa moça. Tão ingurgitada, coitada. Tão acontecida de flamas e faltas. Tão forrada de flagelo e canteiros. Se de tanto doer, finda. Se de tanto gozar, esplende. Se de tanto ser, cala.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Poema desabrigado
Minha asa é a minha casa.
À procura
Estou perdida e sagrada como o amparo de uma dor.
Comezinha
Quero ser comezinha como o milho dos pombos enfeitando os caminhos
Como a preguiça das jabuticabas descansadas num chão coalhado de pés meninos
Como bolo de fubá esfarelando em mãos calejadas de há tanto tempo amar tanto
Como redes morosas, ninando os corpos no sagrado das varandas
Como pipocas numa tarde ontem
pululando sonhos
dizendo infâncias nos olhos das crianças das minhas saudades
Como o amor das folhas recém-amadas pela chuva
Como banho de criança, ô coisa bonita
Algumas coisas são minhas demais
Hei de um dia ser comezinha como o amor de um aceno

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Encontro

Armada de minha nudez, eu milito contra o plástico. Armada de minha nudez, dos meus poros quentes e sedentos como os teus. Solidão, um fosso aberto no lugar da placenta. Enigma sugante e escuro no lugar do chão. Gente dói. A morte e o gume de suas amputações. Sabes quando choras até esvair-se em ser? Quando vomitas um pé e um chão? Quando vomitas um órgão ermo que, nem sabias, habitava o teu estômago? A vida tornou-se sedenta como uma população de giz. Quando não há oásis a gente aprende a ser cáctus? Incursiono pelas minhas profundas aléias e te trago um buquê entretecido de flores tão apaixonadamente minhas.

Tu tens medo de dar-me a mão? Sei que te falo de um jeito que te arrasta cá para as funduras. Tenho palavras afundadoras, eu sei. É que este é meu habitat natural e para cá te convido. Dá medo, mas é tão lindo, tu nem imaginas. Ou será que já o sabes? Aqui a gente é de lupa nos poros. A gente sente, avassaladoramente. A gente escuta a correnteza do íntimo vinho em seu incansável curso, banhando as entranhas. Um mar vermelho e suas vivas estocadas. Escuto a toada da tua existência em confluência com a minha. Quando estou aqui, sou-te e és-me numa mesma entrepele. Namoro silente o halo amoroso do teu olhar. Percebo quando o ângulo frágil da tua retina se crispa dizendo de dores no teu profundo. Ou de perplexidades. Ou de sentimentos indecifráveis. Sei quando me pedes porque é daqui que eu te preciso tanto. É daqui, amor, que um humano nutre outro humano. E a tua face fica tão linda. O bom do teu abraço fica tão intenso. Me deixa falar. Me dá do teu encontro. A palavra me desinibe e apraz-me ser na tua frente.

Psicologia

Eu fiz Psicologia. Inacomodável em palavras. Noites de espírito em polvorosa, alma fermentada de tantos saberes, seres e gestares. Ser psicólogo é fazer de si mesmo um lugar de encontro com o outro. A cada instante já não sou mais eu. O outro rebenta coisas no meu caule, se me enxerta. Eliciei um eu de sob a dor e o amor dessas carnes que me deram para que eu nelas acontecesse um humano. Carnes que me chamam de eu. Ou será que me perguntam o que é eu. Ou será que se me oferecem por trampolim em que chego à tua carne, a um só tempo, distante e tão feita de mim? Estranha e estrangeiramente minha. Foi de meu amar... Eliciei-me de meu amar: o dar de mim, germinal de mim. Dar de mim é, antes de tudo, receber-te. Ah, o ventre das coisas é redondo e teso e brilha como quem gesta o sol.
Me amor
Eu vou para o meu fundo tomar sol. Não aguento ficar engavetada à luz do dia dos homens. Quero um sol de poema. Que vontade eu tenho de viver. Volito desejos num céu de acaso. Deixo que me caiam na face flocos de devir. Abro asas e sortilégios numa amplidão de esmo.
Preciso aprender com a arquitetura eflúvea das nuvens, é macio que deito sobre elas o meu olhar. Essas distraídas transeuntes do céu. Passeiam brancas a sua elegância de ar, noivas de ar, caminhos de chuva. Quero aprender a beijar intempéries, a me inscrever numa essência vindoura, quero passar pelo tempo e nele deixar saudades. Aninhar-me na cadência dos meus passos, eu transeunte de mim, eu nuvem de mim. Caminho porque estou comigo e amo o meu passo. Sou serva de minha história. Serva de minha propulsão. Serva de meu Maior.
Indivíduos
Como ser, sitiados no campo de concentração individualista? Cada um, respeitável e digno, em sua privativa câmara de gás. Cada um de nós, operário da fábrica de holocaustos. Eu chamo de impossível um outro possível que a minha mesmidade aborta?
Capitalismo II
As tuas verdades "mocinhas". Nossas. Augustas e pias, pudicas e castas. Despudora-as. Conta-lhes sobre certas coisas. As verdades querem saber as verdades. Tu tens um rosto ou tens colado à face um outdoor sedutor que te vende a ti mesmo e abafa a mendicância da tua pele a quem cimentaram os poros? Chamas de cetro a marquise que te erigiram por lápide? Chamas "certidão de identidade" o manifesto que anuncia a tua incívica e desumana existência? Quem são esses médicos que consultas para que te façam autópsia? Ah, tu nem consultas. Apenas te sonhas são. Sei como é. Eu mesma faz horinha que acordei e só tomo café se for contigo. Adoro café.
Receita
Busco coisas na antiga casa
fechada, cheirando a silêncio agridoce
na cozinha, os azulejos me reverenciam enlutados,
vexados pela não lágrima
eu precisei chorar só
é que não há mais no fogão a gordura das panelas e o vapor dos doces fumegantes pra que lacrimejem comigo
essas despedidas sempre têm gosto de supermercado por fazer
deve ser porque a gente é meio como tabuleiro de cocada
às vezes recebe uma avalanche quente e branca, ardendo na alma não previamente untada
pra depois ser espalhada pelos móveis nas mãos gordinhas das crianças
farelos de açucar sorrindo nas mãos delas
talvez a vida seja uma receita de pão-nosso-de-cada-minuto
Amor meu
Escrevo de olhos fechados
mas eles se entrecruzam no meu cerne
e deito-me sob a minha própria torrente
ávida e saciada, deleito-me em meu próprio néctar
amamento-me de mim
meu leite craveja-me fresco, feito onda de mar: sou-me nutriz
Minha suavidade me afaga o rosto, brisa rósea como mamilos tenros
no escuro de meu eu, me envolvo em pétalas novas e me desvirgino ao sol
sou o inconcluso que a luz descerra no vagar crescente e delicado de viver
minha fome também me sacia
e sou a gratidão comovida de si mesma
a aleluia emocionada com os além-luas...
Sou somente o palco em que a universidade brinca, dentro e fora de mim
sou mais que o labirinto de espelhos em que ela brinca de se achar bela?
espelhos são testemunhas privilegiadas
enlaço-me, sou meu abraço e meus poros se enternecem no êxtase de beijarem-se
essa transpiração me pertence, meu amor me pertence
me pertence grande como a vontade de dar-me a ti
Milagre
Porque Deus pervadiu-me
Eu, litúrgica, emano poesia
Hóstia-palavra, sacramentai minha ânsia de amar
Vejo chagas nas mãos do altar e elas se amoldam às minhas e me sangram alma à dentro
Augustas e silentes, desse silêncio gritante que abafa o som do meu medo
Sou afagada nas mãos tesas e úmidas e transfundida
Alarguei as artérias de minha fé e nelas me consubstancio amor
Então ouço o marulhar dos meus odres já esquecidos dos dias de secura
Me avassalam os mistérios da flor d'água e me ordenham do rosto essa não palavra, esta não pergunta
chovendo nas lavouras dos milagres
Perguntação
Por que é que essas minhas entranhas inconfidentes me obrigam a ser?
Que boca é essa que me devora e estranhamente me alimenta?
Que gume é esse que me amputa e me rebenta mil tentáculos?
Que cio clandestino é esse que me engole e me excita?
Que crateras são essas que me vomitam pra dentro de mim?
E meu sono intranquilo é pra pulsar?
Feito uma castanha indômita, trancafio o tenro
Iridesço nos meus subterrâneos
Da minha grande sufocação, auroresço
Da fome da noite, a manhã

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Pensamentos
Numa cadeira antiga, uma tarde antiga
Pendo distraída o frescor das minhas mãos
O tempo, silencioso, bordou rugas nelas
Como quem cose uma roupa para a festa de amanhã
recebo o abraço de minha história
Tropeço em pedaços cada vez mais pesados de tempo
Já não ralho com eles, são netos traquinas e amados
Hasteei no vento anéis de cabelos e buscas
e apanho no espelho novelos de prata e calma
Ou de pasmo ante a Grandeza?
Entesourada de mim, de meus passos
e da minha caudalosa incompreensão
Que sou eu senão o vácuo entre a palavra e a fome?
Distendo minha ternura ao rodapé do pergaminho
como quem cobre um filho amado no berço
Minha alma um dia se alará, repleta do que desconheço
e meu corpo então será casa de açucenas
Insapiências
Cá estou eu coração abaixo. E o ventre da palavra está seco. Sou o mapa que não sei e o abismo que não aguento. A realidade flutua sobre a escuridão, nata que entendo sobre o leite que não entendo. Emito tentáculos. Íntimo manuseio de angústias. Cerâmica de sombras.
Sou a que despenca. Sou a tala vergando sob o peso da fratura. A que mastiga pedaços de escuro, estranha hóstia. A que abre a boca para receber a Grande Fome. A que vomita na ribanceira das palavras um revés de discurso. A que grita até rebentar todos os diques da garganta: é preciso sangrar todos os sons, para, enfim, cicatrizar. A que se esgota. A que se esgueira nos vãos do Nada. A que pede na noite. A que suplica. A que se craveja de unhas roucas. A que.
Mas ainda quero. E se esse escuro me pulsa? E se poreja galáxias e se eu intuo lasciva pétalas na vertigem? Sinto cheiros e angario delícias invisíveis. Obstinadamente humana, nanquim e cio.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Carta para a pianista
Será que o abismo é só o céu de cabeça para baixo? Será que os buracos são estrelas vestidas de escuro? Será que se eu escurecer vou saber que sou estrela? Ou a vida é um mosaico de céus esburacados e abismos enluarados? Vou saber me brilhar?
Tenho tanto medo de ser intensa. A minha intensidade pode me deglutir para um estômago de mistério. Eu peço que minha intensidade me ame longamente. Será que voo é o nome do meu repouso?
Passo horas deitada, chorando, vertendo de mim as torrentes dessa coisa irrepresável que me governa. Sei que o mistério me abraça e me amamenta. Eu preciso amar profundamente. Vergo sob o peso dos meus sonhos maduros e de acontecimentos verdes. Mas eu amo nessa irresolução. Irresolução e chamamento. Amor é o nome da minha realidade. Estou me abraçando tão forte que sinto que estou salvando a minha vida. Será que eu aguento me salvar tanto? Cabe no meu corpo esse amor tão vasto? Peço que ele se me ventile em lentos haustos. Uma minúcia de amor é caudalosa demais para um humano.
Impetuosamente amo a minha paciência. Eu afago os meus pés para que eles caminhem devagar. A estrada alada os caminhará por mim. Me basta a entrega? Me abasta a confiança que amar me rege. Eu quero que o meu medo me ensine que mereço a minha coragem. É certo que eu desnecessite de coisas certas? Estou certa de que me desgoverno para que o sagrado se me instaure. Eu me apresento para sediar Algo. Sou feita de Algo e esse é o meu destino. Algo é o nome do amor? Estarei aquecida e amada com a quentura inquestionável das coisas sagradas. Ama-me baixinho como a um filho frágil. Talvez eu caia do berço para voar. Talvez eu sangre nas asas. Talvez a asa me ame tão forte que me leve alto para onde sou.
Eu tenho medo de altura. Da minha altura e da sua. Me deixa te abraçar forte. Me deixa despencar ao teu lado. Seguro a tua mão forte para que caiamos sobre a estrela mais bonita e a nossa queda, eu sei, vai desfiar penugens de luz. Mas será que voar dói?
Pode ser somente amor. Pode ser alto como uma face amada. Pode ser um silêncio último que só uma beleza tão fulgente pode orquestrar. Vou desafinar o meu instrumento na tua frente para te tocar. Porque amar é a única música que importa. Vou peregrinar por entre os acordes de uma música insabida e insólita. Eu sou a música das minhas insuficiências e da minha amorosa condição? E a tua cadência nos convidará para a dança de nossa inexatidão. Nossa dança é secreta como o útero das emoções. Amar precisa de coreografia? Precisa que eu seja e que tu sejas. Precisa que eu deixe de precisar de coisas que não preciso. Amar é minha única precisão.
Melodicamente vou desafinar para entoar no teu íntimo os meus acordes possíveis e o descaminho dos meus silêncios. Eu sei que mereço a carícia do teu ouvido. A minha beleza precisa da minha dissonância. Será que o meu amor caminha justamente nas aléias acústicas das minhas dissonâncias? Tenho força o bastante para ser balbúrdia de sons? Cola o ouvido na minha pele para me ouvir: eu não sei fazer silêncio nos poros.
Tenho olho que aguente ver as coisas que são metade coisa e metade abismo? Eu aguento sentir na pele o desfazimento das minhas hipotéticas certezas? Eu me radico num terreno de intempérie em que dá uma flor tão bonita, de pétalas imprecisas como se fossem chamas de vela, não se sabe onde termina a pétala e onde começa o ar. Eu preciso ser indelimitada para saber o que me circunscreve. Preciso que as flores luminesçam a minha primavera interna.
Abraço os meus esvoaçamentos, meu esboços. Minha escrita é condenada a ser garatuja de uma escrita vindoura? Assino com letra indelével que "eu amo", gravo o meu nome em pesadas tábuas de éter que só uma matéria de éter é capaz de esculpir. Sou uma lamínula diáfana e frágil porque voar pede delicadeza. Sou frágil em nome da minha reverência? Fragilidade é o desnudamento da minha coragem? Fragilidade é o nome que dou à minha entrega? Amar é uma névoa que opera em segredo o frágil das coisas? Frágil é esse nome sem pele da vida que ainda confia que sabe abraçar a si mesma? Frágil é o nome pungente e alado do amor? Eu caminho sem pele pelas aléias do meu sonho porque preciso de uma vestimenta sagrada. Não quero que ela me vista, quero que ela me ame fundo como a confiança de uma cegueira.
A minha nudez há de robustecer a minha transparência e a minha irmandade. Irmandade é a consonância de todos os que excursionam para o sagrado? Irmandade é eu desembocar tão desmesuradamente humana no teu sendo que é também o meu? Irmandade é eu te ser tanto?
Eu me temo porque quem sabe se eu sei nadar no mar das minhas intensidades. É que um dia me afoguei. Me afogar foi o jeito desajeitado com que o mar me contou seu tamanho. Será que o mar sabe que só consigo enxergá-lo indecifrável? Ou a água vai ensinando a minha pele a também ser mar? Eu esqueci a minha liquidez e agora a rememoro à medida que desvirgino as águas com minhas braçadas assustadas? Eu esqueci a minha sereia identidade? Talvez o mar me ensine a ser eu e eu o ensine a ser mar.
Trafega nas minhas artérias uma rubra turbulência. Um caldo de framboesas ardentes retumba uma circulação de caos candura. A vida é vermelha como um desejo e eu crepito nessa ignescência de palavras. Albergo o entrechoque das minhas emoções convulsas, eu só sei me ser contrária, eu me atraco comigo, me sou veneno, me sou antídoto. Não sei concatenar a minha margem com a minha outra margem e sou um rio desalinhado e anárquico, mas que pulsa seu curso. Eu não concordo comigo e é essa a minha possível serenidade. Talvez seja esse o jeito torpe da vida me ninar para que eu nasça serena.
Viver é essa coisa que afoga que afaga que impede que impele que pausa que pulsa desmorona emociona cala fala responde esconde mata arrebata. Eu sou no entremeio dessas coisas? Que vexame eu ser de pele! Preciso ser para continuar viva.
Por que me julgo e me promulgo severas sentenças? Eu interdito as minhas veredas com os meus veredictos? Sou só gente-pedaço-de-realidade, pequeno pulso vibrando o pulso do mundo, pequena parte tentante sorvendo possibilidades. Minha ânsia de amar me advoga e me absolve. O outro me ataca e me acomete? Ele está empunhando as suas verdades meninas para me contar assustado do seu frágil? Não inunda a nós todos esse humano que parece uma infância incurável? Ficamos inflamados e graves, defendendo veementes as nossas verdades de brinquedo. Ás vezes tenho vontade de rir de nós com amor, com o amor doce de quem surpreende crianças brincando adultezas.
Eu preciso estar certa do que o outro, como o outro, porque o outro? Nada mais preciso senão amar e só o amor me ensinará a crescer dentro da minha infância. Serei, até a velhice, dessa pele-infanta-existência e tenho de brincar de me amar de verdade. Invento uma genial brincadeira de ser criança abraçada, amada, nutrida. Quando ficar velhinha, vou brincar de uma alegria que só a sabem as meninas- velhas. Haverá brinquedo e guloseimas nas minhas rugas. Haverá, como todo o sempre, fragilidade e abraço.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Cisão
Amor meu, eu quis fetalizar-te no âmago mais forte de minha maternidade e acalorar-te no mais protegido de mim, e eu não podia e não podia. Eu via o teu sangue espargir pela minha chaga e minhas mãos não bastavam para estancar: era preciso que se vertesse todo o teu sangue de menino para que o homem te nascesse: mas eu era mãe demais para suportar olhar.
Ainda que eu te empurrasse à lápide-nascedouro no morrer do amor, eu queria fetalizar-te... eu cravava as unhas no teu corpo e pedia: me põe no colo, filho meu, que eu também tenho medo de nascer, divide comigo tua placenta, comunga comigo esse pão amargo, havemos de sobreviver ao fórceps: este é o nosso corpo que é dado por Voz do Amor Maior. Será que o pássaro se desespera à primeira fina e pungente luz adentrando o mundo no seu ovo? Haveria de ser minha culpa, haveria de ser meu amor falho e parco. Haveria de ser a miséria de ser eu. Mas eu peço ao ovo que arrebente. Eu quero luz e cores. Que pulse intempestiva nas minhas mãos a eterna fremência do que vive. O que é a falta senão a saudade de uma alimento que existe e que ama minha fome?
Cicatriz
Eu não queria ter aprendido a sangrar, mas foi preciso. As asas precisaram de sangue circulando-as o ímpeto do vôo. Voar pulsa. Parece que foi ontem que eu sangrei estas flores. Parece que foi ontem que eu ensinei essa dor a amar. Parece que foi ontem que eu pus no dentro uma bandagem de estrelas.
Flor-poesia
Conheci uma ferida que virou flor
Pois sim, porque as flores têm biografia
Cansou-se de exsudar sua dor
Emigrou em longa viagem
deixou seus invernos, pois queria florir no verão
É que ferida quando quer ser flor é uma teimosia só
Nem que seja no cimento, nem que seja no asfalto
Bem verdade que seus invernos a polinizaram
É que a dor das feridas também poliniza as flores
E chegaram os dias de sol
Ela verteu suas pétalas do seu sendo e abraçou o sol
Exsudou néctar, sangrou perfume
E hasteou-se na tarde entregue ao vento
Como não acreditas na história de minha flor?
Se também te escrevo travestida de lágrima, mas sou poesia
Capitalismo I
Queres mesmo recolher-te à inanição do teu cativeiro de posses? Tu chamas de sol o teu privativo abajour? És mesmo este servilismo a esta obscena maquiagem de codinome vida? Cosmética, apoteótica, patética, cáustica, estética, estóica, ética, elegante, pungente, cósmica, tua, sã?
Não corre atrás dos teus sonhos como te aconselham os demônios neoliberas, tu terminarás fatigado e vazio. São mesmo teus os teus sonhos ou tu te prostituis do sono de outros sem que percebas? Não são postiços os teus olhos? Sê teu sonho e teu poro. Navega o cerne cristalino e pulsátil dos teus anelos. Bebe das tuas utopias nossas. Nós que somos feitos de busca. Nós, rios sem foz. Cada vez mais minha humanidade me acomete e já sou um caso perdido. Oxalá eu sempre me perca porque o lugar em que disseram que eu me encontraria era estreito e sem sol, e eu sou sempre-viva. Por isso é que me perco, e, assim, vou aprendendo a voltar para casa.
Velhinha
Ordenho as tetas do tempo. Como serão meus aniversários? O que é a velhice senão a antologia das nossas sensibilidades? Maturo a minha puerilidade para, ao final, colhê-la. Ou será que já a colho todos os dias? O que mais fazem os anos senão alocar vida nos nossos poros? Imagino-me com olhos de criança quando a vida se me trouxer eu, nudez tanta, tonta, tinta em tantas cores, envolta em laços de fita, aos 70, 80 anos. Quando eu for pequena, do tamanho de uma velhice, quero trazer nos olhos baços, mas não incólumes, a mesma infanta volúpia: o que mais ser e crescer? Como sempre, sorvendo verdades ininventadas, sabores indegustados, amores indesvelados. Ai que fome, dá vontade de comer um caminho inteiro. Porque o horizonte insiste em intumescer-se no meu peito, uma vastidão me quer para si.
Viva
Acordo e deito com um sol inflando no meu peito. O que será isso? Mo digas tu o que a tua nudez te segreda. Me conta o que os teus poros te bradam. O que sibilam as tuas mordaças rotas? É que eu confio em ti. É que eu sei que flamejas. Outro dia, vi na loja boneca de porcelana tão linda que me sorriu um sorriso tão gordo e desbragado de infância. Ela me brincou inteira. Naquele momento, eu me senti tão túrgida de vida, como se todas as bonecas do mundo brincassem de criança comigo. Como se eu amamentasse toda a prole do mundo com alegria e riso em leitosa forma.
Enigma
Pergunto coisas à minha esfinge interna. Gosto de profundidade. Quero ser funda como uma nudez. Funda e difícil como um horizonte. Funda como uma semente alada. Funda como um silêncio desnecessitado de promessas. Funda e desconcertante como um humano. Funda como a proclamação da luz. Funda como um amor. Às vezes me deito no leito do mundo, placentária e franjada de afetos. O mundo me arremessa suas cores, seus fantasmas, sua alma enorme de mundo. Tão vasto que dói. Ser nua é uma profissão muito difícil.
Teimosias
É já que te conto que a natureza pariu, de madrugada, copo-de-leite. Não em vaso que não gosto de flor aprisionada. Em canteiro de terra solta, de grãos quase flutuando uns sobre os outros. Copo-de-leite amamanta o olho da gente, da luta da gente. Eu também tenho dentro de mim uma haste corajosa e dourada que me eixa e me hasteia ao sol. Furor de minha vida buscante.
Eu que sou fornida de pulsos vida de gesso não quero. Porque sou suor e êxtase. Preciso ser sem mordaça nos poros. Eu me movo e movo o mundo que me move. Vê lá que aceito o veredicto dos geômetras. Viver em mortalha de ângulos, nem jamais. Eu que sou de formas redondas beliscando a tez dos limites. Os limites servem para que eu ame a minha perseverança. Eu os sei e os quero bem. Só não me venham envenenar com eles. Não chames de limite a vossa opressão. Haja o que houver, há de remanescer em mim uma flama de sonho, num ato de sonho.
Desafio
É que pouso nas tuas mãos o frêmito ignescente de órgãos vivos. Aguentas o visgo frágil e incandescente nas tuas mãos? Amar queima, indelével como beijo de criança. Tu que achavas que te sabias erógeno. Então, vomitarás a mornidão dos teus orgasmos esquálidos. Porque a vida abocanha a si mesma com seus dentes largos de devir, é de uma avidez insistente, pungente, entontecedora como o tamanho da Vida.
Lágrima
Lágrima. Esse espaço de água em que ora sou. Nele velejo-me, eu me enterneço com as ondas do mundo. Olho no espelho o veio de minha lágrima desenhando sentimentos no meu rosto, ingurgitado de mim. Achas que me sei? Qual o que! Quanto mais sei de mim, mais descubro que sou ( , ! ! , ,, ,,,,). Cômica, aporto cotidianamente as minhas naus desbravantes de minhas íntimas águas, e penso que descobri a totalidade de meus mananciais. Não me canso de fazer atoleimadas constatações. Qualquer porto é uma gota que aflui para a vastidão de águas de minha insolubilidade. O mar humano é orlado de seus próprios indelimites. Aportamos apenas ilhotas em dízima periódica que nos iludem a doce (necessária?) ilusão do encontro total. A mim cabe amar minhas naus e aniversariar ilhotas conquistadas. A mim cabe pedir que o tempo e sua maresia me ensinem a navegar. Eu canto uma canção de marujos porque já sei ser cálida.
Sonho
Sonho com um dia em que viver seja mais do que manter a cabeça à tona do fel. Por que damos o nome de humano à supressão do humano? Sonho com um dia de poros alforriados. Poros sapientes de que hospedam os poros dos outros. Ah!... a liberdade de libertar-te... um hausto existencial tão gordo, tão fluido... Acaricio a tez dos teus sentimentos não para ter-te, mas para que o teu voo me abençoe. Eu me ajoelho ante a ser tão grande o que vive. Será que a vida ainda é para aquele que a vive? Ou para aquele que a aguenta, que a sofre?
Comunhão
Eu gosto da idéia de tempo. O tempo que rebenta, cheio de seus cios e de suas urgências. O tempo que se aninha, cálido e menino, no colo dos homens. Deito na relva a minha nudez de homem. Peço que a paisagem descalça me pise o dorso com seus pés de natureza, pés com cheiro de vaca comendo capim. Daqui enxergo ao longe uma cachoeira, lágrima serena pendendo morosa no rosto da paisagem, distanciando-se lenta da sua sobrancelha de arco-íris. Esqueci de olhar no relógio porque a paisagem está me amando. Eu pertenço ao capim, ao meu dorso, às vacas, ao indizível.
Carta ao outro
Autobiografo-me no entalhe do teu sendo esculpindo o meu. Sou escultura da tua presença. E a ti também esculpo, e contigo sou grão de argila de uma escultura maior; somos pontos que dançam e desenham o holograma vivo da existência.
Somos labirintos com mapas impressos na carne do outro. Os teus pés se justapõem aos meus e perfazem sendas que se entremeiam, e é do nosso compasso a geografia incógnita que nasce e vai se inventando.
Só no espelho de ti me conheço, apalpo os meus contornos e desbravo os recônditos de mim. Só contigo deflagro meu crescer, teço o caminho que vou elegendo para perscrutar meu dentro, e dele sorver meu sentido e o nosso. Na vida tão lúdica, o onírico, hora a hora me beija a realidade. Numa tela porosa deito-me paisagem, sou pincel e defloro as cores, faço amor com as texturas, seduzo nuances e as aquarelas me são harém. Preciso de teu espelho para guiar minhas mãos e co-autorar minha arte, da tua cumplicidade no rir meu riso e verter meu choro, e no sofrer de minhas perguntas. Preciso que a luz única de teu espelho incida no prisma que sou e me desvirgine as cores que ainda não conheço, preciso de ti.
Me oferto-te cálice e tomo-te por pão, bebemos de nós nosso desvendar. Derramei-me nas tuas frestas e comunguei teu profundo, emergenciada de amar. Somos nutrizes uns dos outros.
Clarice um dia sussurrou-me das entranhas da sua alma "quando uma partícula disse sim a outra partícula a vida fez-se". Ela tem mesmo mania de beijar estranhos e salpicar-lhes as pétalas-palavras que profere.
Jamais dançamos sós. A minha cadência convida a tua e a beleza ímpar do teu passo que do meu diverge a nós converge ao vivo que gestamos.
Mas a rudeza de mim me trai, quem dera eu fosse permeável como Clarice. Estranho o teu diferente e tenho arroubos de excluir-te e de julgar-te e de extirpar-te de mim. Quero ilhar-me em meu egoísmo e tribalizar-me solitário: solidão, palavra impossível.
Ah, quando me inebrio nesse engodo... Rastejo e agonizo inerme, no casulo suicida em que me encarcero, sôfrega e pedinte de ti, pois só contigo gesto e sou gestado, só em nossa união é que a vida quer viver.
Pobre de mim que quero congelar-te e satelizar-te ao insano de meus desejos. Esqueci-me da luz singular dos teus olhos e do intenso da tua alma. Esqueci-me da incandescência vibrátil que te pulsa no peito e te enfuna as artérias, gordas da volúpia de ser ti mesmo. Esqueci-me do teu ímpeto único de amar. Esqueci-me do som irrepetível da tua voz que vibra junto à minha e entoa comigo uma melodia inaudita, instante a instante, sinfonizando nosso existir: somos compositores perenes.
Por que me esqueço? Por que a morte me permeia a vida? Por que esquartejo minha existência e a tua e amargamos o mortificar de nós?Talvez porque verdade seja sinônimo de busca e busca de inconclusão, e de caminhar.
Quem será mais a forte, a vida ou a morte? Ou será que são indissociáveis e complementares como o ser-me e o ser-te, e o sermos todos? Se a morte desse instante é implacável e absoluta. Ou será que é prenhe da vida de outro instante?
A morte. Essa que me estraçalha e me eviscera os nervos, e me desarraiga os pés do chão. Urro a minha dor e vertigino-me na angústia de morrer, em vão tento agarrar-me a corrimãos no éter. Então satanizo a vida e quero proscrevê-la de mim. Mas em que braços eu acordo em outro berço?
A vida se confirma na negação de si mesma, põe-se em negrito para contemplar sua resplandecência, declama seu verso na estranha poesia de seu reverso. Talvez seja uma moça muito vaidosa. A vida en-Luta, mas Vivi-fica.
E se tantas dessas mortes sou eu que te sirvo quando me omito de cuidar-te e de dar-me ao teu cuidado. Ou quando nos abstemos de cultivar os arados do Éden que nos foi dado. Renegamos nossa Mãe-Terra, nossa nutriz maior.
Toma minha vida-menina nos teus braços e dá-me a tua. Viver é cuidar de criança. Se a minha alma tem joelhos fincados nessa concretude, quero fazer-te templo, e que minha oração seja reverenciar a cada dia o inconspurcável de ser-me e ser-te.
Olha comigo essa vida que se convida para viver seu intenso, acalenta comigo o escavar das alturas de nós. Havemos de libertar os alados que nos habitam, ávidos por alçar voo de asas bem abertas, livres e entrelaçadas, orlando o horizonte inimaginável que vela por nós.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Menina dos olhos do sonho
Eu só cobiço um dia de viço
Não precisa rima nem sina
Eu só rabisco e insisto
O sonho que sonha a menina
A menina tem olhos de sonho
E o sonho dela é a menina dos olhos
Não sei se a menina é dos olhos
Ou se é menina do sonho
Porque menina sem sonho
É olho sem menina
E até no sonho da sina
Tem menina pra ter sonho
Parto
Um corpo adoecido
Emagrecendo paulatino, esvaziando-se de si
Minhas células conspiram contra mim?
Ou apenas me remam ao meu encontro?
Eu que sempre fui eu agora sou vetor de mim para onde
Para onde.
Inexoravelmente, estoicamente, incandescente, murchante
Bebendo do dúbio copo, metade vida, metade morte
Pêndulo estéril de oráculos
Talvez eu sare, talvez eu morra, talvez eu perceba
Que a vida foi sempre um caudaloso talvez
Talvez eu saiba que amei tanto e tanto
Que a vida foi excruciante vida deleitosa, leitosa e sementeira
Talvez eu manche o avental da enfermeira de uma rubra transcendência
Vermelho mais luminoso que vermelho
Mais unguento que cruento
Talvez eu a ame indelevelmente
Talvez eu lhe conte o meu segredo de prenhez travestida de despedida
Talvez eu sangre nela a minha vivacidade e a minha lucidez
Talvez eu encomende cuidados aos meus que ficam
Adorados, amados
Suo mais de saudade que de febre
Eu que adoeço a dor difícil de um novo começo
Talvez eu jejue de mim mesma
Última corajosa refeição para que eu, enfim, caiba num corpo de gênese

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Advertência
Não brinca com gasolina sobre o corpo das palavras que elas sabem ser sol.
"Claricices"
Silêncio. Palavras amamentando pessoas. Quero sobrevoar minhas reentrâncias, fazer piruetas no ar de meus cernes. Hei de içar borboletas cheirando a terra. E de uma secreta dor eu gesto as minhas asas, preparo no ar a minha mangedoura, ainda que me pesem as asas sujas de terra. Será que é amor o nome desse húmus? Será que é fé a encorpadura desses caules? E de multi-galhos eu quero viver, eu quero angariar divindade.
Deus, será que se eu me deitar bem fundo no avesso de mim, eu Te toco? Também Tuas mãos etéreas vejo sujas de terra. Não é curioso eu estar me lavando na terra em que me instalastes? Eu mordo a terra porque sou ser fotóvoro.
Holofotes sutis desvelam a minha intra-aurora. E de tanto me despir eu me encho de pétalas. Que é em estado de nudez absoluta que eu amo. Eu, nudez tanta, revirgino-me, rego mais amores. Que quanto mais eu me desnudo, mais eu escancaro a minha mistura de terra e luz.
Dou minha mão em casamento ao meu desnudamento. E nunca haverá mais sacro despudor. Alguém já ouviu falar em gente destilada? Se consegue lavando gente com terra. E pensar que um dia foi tanta dor, como se eu tivesse dormido no fel. Mas chega o tempo do despertar e, fel-incitada, acordei. Ou fel-excitada, não sei. Sou do amor que sei e des-sei, inconclusa e cotidianamente. Lembra que eu me revirgino? Tenho um estoque inesgotável de hímens, tal qual meus óvulos. É preciso maturá-los para, então, revirginá-los. E é tudo que eu digo me reparindo. Palavras parindo pessoas. Será que se pode chamar de dor a vida dilatando a pelve? É dor a vida esgarçando a superficialidade para nascer?
Que graça de traça
Ai amor, te atentas à tua toga que ela está forrada de traças e de leis baças
Ai que a toga quer mesmo é virar lona de circo
porque vê criança injustiçada sem brinquedo e sem direito a riso
A toga de traça quer mais é fazer troça
até ver criança de riso escondido e costela de fora
amar colorido o homem da toga que dá cambalhotas e sentencia sorisos
Ah que toga sem juízo
O homem da toga, sisudo e conciso
alberga também, debaixo da toga,
criança magrela que já não sabe
chamar o mundo de paraíso
Ah, é porque as suas leis têm números demais
E os números desaprendem nos homens as suas piruetas
E não sabe mais ver criança de barriga balançando, cheia de riso e algodão doce
Quem sou eu e quem és tu, nesse show de rebuliço?
Os adultos da toga que deixaram órfãos so seus papéis?
Não me lembro quem eu sou: a toga, a traça, a lona?
Ai amor, meu papel eu não o tenho lido e sabido
E é banguela a minha jurisprudência
Só me deixe ao lado da criança
Porque a barriga de riso tem fome
e pra ela, eu sei que é preciso,
que eu corra a cozer rapidinho
um mundo, ao menos um pouco,
com gosto de paraíso
Instante
Vi foto de beija-flor tão linda que me espirou néctar. E olhei com um olho tão enxergado que virei lágrima. O sentido das coisas ficou tão intenso que galgou para um lugar chamado silêncio. O silêncio é a quintessência do sentido.
Jurisprudência
Somos tão sábios e há sangue na nossa toga. São tão rápidos os nossos chips que já não apreendem sequer a durabilidade de um sorriso. São tão velozes os nossos trilhos e milimétricas as nossas estações, que já não sazonam sequer a nossa compreensão de nós mesmos. Eu já não desço mais do bonde para te abraçar. Já não tenho tempo de sentir o que sou eu. Amputo as coisas das coisas. Porque sou tão meteórica e pirotécnica que já não me posso apreender. Até quis olhar no espelho, mas eu já tinha passado.
Tenho saudades de me sentar comigo na varanda, sob o sigilo das samambaias, sob a lira dos pintassilgos. Como faz falta gente na vida! Tenho saudades de me deitar na relva sobre o amor das coisas. Sou sensacional e já não tenho sensações, nem tempo de me comemorar. Envolveram meu corpo em papel celofane (e eu queria abraço de criança) e a minha caricatura embrulhada sorri um sorriso estético e enfermiço. Eu chamo de opulência a minha fome. Eu chamo de mundo meu franco desespero.
Eu quero me espraiar nos prados sobre a volúpia da terra. Dentro de mim, venho sonhando a minha vocação de enxada. Porque preciso revolver a minha casa e arejá-la com túneis humanos. O que fiz de minha oca? Vou sonhar searas da cor de tudo que eu preciso.
Livro nascido
Se revistares meu íntimo agora, encontrarás placidez de riacho. Cachos de água penteando a sede da terra. Senta silente às minhas margens e põe os pés nas minhas águas. Vê como é tranquilo e tépido o que sou. Eu amorno os teus pés para te amar. Preciso apenas que roce sobre mim um lençol esvoaçante e branco. Estou extenuada e pálida e há suor na raiz dos meus cabelos. Um lençol que me acarinhe e que eu sangre o sangue repousado da que deu à luz uma saga. Só preciso da carícia de uma cicatrização. E do teu amor. É já que acordo com fome e com o peito cheio de leite. Fecho as páginas desse relato e elas pesam e pingam afetos. Estou extenuada e largada no leito das minhas emoções. Eu me despeço e te desejo vida e azaléas. Nada mais preciso, apenas ser.
Tempo
Eu penso em envelhecer. Envelheço porque se apinham em mim as minhas intensidades. Mãe, agora que eu cresci e já fiz lição de casa, lição de tantas casas que fui, morei, amei, tu me deixas nascer um pouco no quintal? Envelheço porque a memória me enche de nácar.
Menino
Olha o menino debruçado na árvore, se refestelando de fruta boa. A gente não sabe o que brilha mais, se é a fruta madura ou é o menino que é gente verde. Tu sabes permitir que ele amadureça encantos? Tu me ensinas a aprender contigo? Tu deixas que as minhas perguntas abracem as tuas? Será que eu sou madura para beijar o menino verde? Será que eu sei velar pela paz das frutas? Será que sou eu que sou verde? Acho que sou e muito.
Rio
É já que te conto que andava doída de minha secura, me esfarelava por dentro, puída de meus sentimentos calcários. Um rio convidou meu olhar e deu de beber à minha língua. Tu sabes como é um rio? É o registro de um amor. É quando a terra se abre, langorosa, em côncavo e recebe, em amor, a presença das águas. Lembras que o mundo ama o mundo? Toda secura guarda em si uma promessa de águas. Toda sede é a mãe do segredo de um rio. Todo rio, um dia, acarinhou uma planície de seixos secos. Até hoje é tão côncavo o que te escrevo que me marulho inteira e me nadam peixes. Tu és rio de ti?
Notícia
Me contaram uma vida tão triste, será que é a nossa? Um eu que dizia "eu me exilei de mim porque me tornei um lugar de tortura. Dentro de mim ficou vazio e sacola de compras. Nenhum bilhete porque não soube o que me dizer. Eu esqueci a minha língua. Queria mesmo comprar o direito de voltar pra casa: eu que sou de uma humanidade tão moça, com toda a vida pela frente e poros pra trabalhar. Aposentaram minha humanidade por invalidez? Pensei em te pedir abraço, mas, meu Deus, e se o teu abraço me convida para ser? E se eu me afogo nessa nova atmosfera?
Separação (Carta para minha enfermeira)
Amor meu, parecias menina-moça, assustadiça de seu primeiro sangue. Dissecou-se o Vosso corpo de sob a minha pele, amor de minha vida, à nossa revelia e à vigência de nossa virgindade. Era pra ver a causa de até que a Tua morte nos separe. De que mesmo morreste a Tua morte de nós? Não olha pra mim. Não me avassala de tanta denúncia. Me devolve as pálpebras para que eu as aperte em torno do tumor dos meus olhos. Me deixa trancafiar as retinas. Já é tarde, um gosto de olho já me amarga o peito. Remove este fel que me percorre. Eu peço clemência a quem quer que seja. Quem fechou a torneira de ar do meu mundo? Cala a boca desse arauto insistente, devolve a luz da minha garganta até que eu não mais escureça.
Saudade asfixia tanto assim? Saudade dos dois segundos antes. Antes de perder-te, amor de minha vida. Corpo lânguido e plácido que eu tanto amei. Viúva e defunta, eis o que sou, e nem mesmo me sobeja força para acompanhar meu féretro. Por que foste tão pouco e te amei tanto? Te traz de volta nesse eco do meu rastejo... nem que seja um naco... uma farpa... um último gole... nem que seja fel-doce...
Será que existe sabão ou antídoto, prece... ou cicuta? Amálgama das minhas carnes, não te descoles levando a pele dorida deste que me pulsa. Não me deixes contorcida e inerme. Por que eras tão pouco, minha enorme falta? Não te degredes de mim, amor trânsfugo. Empresta-me um dedo, eu vou enfiá-lo na garganta do tempo. Nem mais um grão de minha vida darei à goela das ampulhetas. Devolve o visgo do útero que me alberga. Dá-me calor e água. Dá-me intumescência circundando os meus contornos. Dá-me defesa. Dá-me um vomitório, pelo amor de Deus.
Até que não sobre nem o nada, que eu me regurgite intensa e inteira, dá-me a benção de abolir-me de ser. Eu quero me erradicar da ordem das coisas. Não quero um álibi que me salve, quero a condenação irreversível. Onde devo depositar o meu último deitar-me? Alguém me estanque de me perder tanto. Me tragam bandagens quentes, um curativo compressivo, alguém me impeça de verter minha última sede. Alguém me salve, me cuide, me reensine.
Houve alguém. A enfermeira das bandagens internas. Bandagens de palavras. Emplastos de mãos entrepostas e lágrimas comungadas. O silêncio e o sangue suportados a duas humanidades. Foste a fresta grávida de horizonte na ausência de janelas. Que varredura íntima empreendemos. Quanta página em branco no livro já escrito. Quanta erosão nas cores estagnadas, quanta ilusão nas flores desabitadas.
Que dor, amor meu, o peso de não ter-te, morreste do desanunciado da certeza interna. Eu orei junto à minha enfermeira: Senhor, abre no meu cerne uma mangedoura para o amor. Fende, Senhor, as vastidões compactas do meu medo, inaugura Tua nascente. A dor me deixa eloquente: é difícil até que eu ouça o meu calar: a vida então fala em mim porque a minha fala é pequena. Meu silêncio é a mangedoura das novas palavras. É preciso que eu cale a boca, que eu feche os olhos. É preciso alargar a pelve para a passagem do sagrado. É a experiência do lancinascente. Lancinante? Nascente.
Deste-me aos braços a minha pequenez. Eu te acalento nos braços, pequenez amada que sou. Pequenina matriz trêmula dos meus passos e pequenino prenúncio alegre do que ainda não sou. Pequenez querida que nino junto à tua e às todas nossas. Existe um todo que nos acalora. Existe amor que guia nossa aparente incoerência. Queria que minha enfermeira coubesse nas minhas palavras, mas ela não cabe nem nas dela. Algo maior veio urgir de encontro a nossa pequena carne. Se eu pudesse pinçar um instante, seria este: o inspirar lento e o fechar dos olhos, tempo para que os sentimentos de acomodassem nas palavras. Olhos redondos, pasmos do encantado da vida...
Solidão, vasto vácuo descomunicando-me a mim mesma. Terá ficado a minha voz do outro lado do deserto? Quase não me ouço e é quase que a minha coerência me abandona. As vacuidades são moças grávidas. Tenho poros urgenciados pela ânsia de viver. Me extravaso e me recompilo. Sou em curso. Sou aos goles, vou me bebendo paulatina do copo da vida. Sou aos haustos. A vida se me insufla às lufadas. Existir é aprender a ser pulmão, é o alargar das mucosas, é rebalizar as pleuras. Sou-me uma coletânea de percursos inter-multiplicantes. É preciso com fé desconstruir os claustros? E construir outros? Não. Construo uma casa feita do cimento das asas.
Visionário? Não, é a exacerbação do olhar, é a beleza redesvirginando as retinas. Como é lúbrico vi-ver a sensualidade do porvir seduzindo o comezinho dos dias, como quem ama na segunda de manhã. Estão batendo na porta. É uma arauto do Afago do Todo...tem um bilhete..."eu te trouxe um buquê de cotidianidades". Põe na mesa, não espera, enche os olhos desse agora, permite o erógeno das narinas, refestela tua sanha de amar mais. Mata a tua sede nesse copo de simples. Será que sempre existiu um sol escondido na sempre-viva da calçada e eu nunca vi?
Ah olhos imberbes.Hei de incutir-lhes a maturidade até que cresçam o bastante pra puerilizar a vida. Quero aninhar as latências durante o estio, quero aguentar o inverno, quero erigir no cio. Quero renunciar a beleza para ver a candura. Renuncio à beleza das cascas e das camuflagens, quero a beleza das carnes crescendo desde dentro. Por quantas avalanches de sangue passaste, chaga amada e tez dorida do eu que sou? Como é linda a sua pele rugosa e cicatricial. Eu não quero a lisura, quero a insígnia cutânea da minha auto-militância. Quero o registro dos meus passos. Quero o mapa do meu me amar. Falo demais do eu? É que eu precisei descer meu poço pra te oferendar água, é só assim o dar de beber ao nós.
Sou amor e acervo. Desgarroteei o meu verso e a minha voz, pavimentei a mim mesma um chão de sementes. Quero esticar-me até a minha última complacência. É do diâmetro da minha dilatação que eu predico a vida. Eu, nudez tanta, quantos dedos já me cabem? De quantos dedos estou nascendo hoje?
Poema para Cibelle
Tire da bolsa retalhos de acaso
Borde lantejoulas, perfume com alfazema
Jogue do telhado nacos de poema
Como quem alimenta pombos e pessoas
Tire da bolsa noites risonhas, luares largados
Deixe o tempo ornar de tempo
O amor dos amigos, o sem-ar dos namorados
Sopre na modorra do vento mechas longas de palavras despenteadas
Dessas que se escondem quando a gente não cabe em tudo que sente
(Falei pra não por peso na palavra que ela rasga
palavra é mesmo bobagem, palavra rasga à toa)
Tire da bolsa gestos morenos, afagos de canela
Dance com os olhos magias castanhas
Desfile rubores, vestidos, quenturas
Tire da bolsa a poesia mais bela
Tire a vida que inventa, a menina que tenta
Que a noite já vestiu sua pele negra
seus colares de astros, seu perfume de segredo
Pôs à mostra sua tatuagem de lua
(noite é mulher e incandescência)
Ah menina, experimenta
Olha a lua tatuada molhando a gente de estrelas lentas