Carta para a pianista
Será que o abismo é só o céu de cabeça para baixo? Será que os buracos são estrelas vestidas de escuro? Será que se eu escurecer vou saber que sou estrela? Ou a vida é um mosaico de céus esburacados e abismos enluarados? Vou saber me brilhar?
Tenho tanto medo de ser intensa. A minha intensidade pode me deglutir para um estômago de mistério. Eu peço que minha intensidade me ame longamente. Será que voo é o nome do meu repouso?
Passo horas deitada, chorando, vertendo de mim as torrentes dessa coisa irrepresável que me governa. Sei que o mistério me abraça e me amamenta. Eu preciso amar profundamente. Vergo sob o peso dos meus sonhos maduros e de acontecimentos verdes. Mas eu amo nessa irresolução. Irresolução e chamamento. Amor é o nome da minha realidade. Estou me abraçando tão forte que sinto que estou salvando a minha vida. Será que eu aguento me salvar tanto? Cabe no meu corpo esse amor tão vasto? Peço que ele se me ventile em lentos haustos. Uma minúcia de amor é caudalosa demais para um humano.
Impetuosamente amo a minha paciência. Eu afago os meus pés para que eles caminhem devagar. A estrada alada os caminhará por mim. Me basta a entrega? Me abasta a confiança que amar me rege. Eu quero que o meu medo me ensine que mereço a minha coragem. É certo que eu desnecessite de coisas certas? Estou certa de que me desgoverno para que o sagrado se me instaure. Eu me apresento para sediar Algo. Sou feita de Algo e esse é o meu destino. Algo é o nome do amor? Estarei aquecida e amada com a quentura inquestionável das coisas sagradas. Ama-me baixinho como a um filho frágil. Talvez eu caia do berço para voar. Talvez eu sangre nas asas. Talvez a asa me ame tão forte que me leve alto para onde sou.
Eu tenho medo de altura. Da minha altura e da sua. Me deixa te abraçar forte. Me deixa despencar ao teu lado. Seguro a tua mão forte para que caiamos sobre a estrela mais bonita e a nossa queda, eu sei, vai desfiar penugens de luz. Mas será que voar dói?
Pode ser somente amor. Pode ser alto como uma face amada. Pode ser um silêncio último que só uma beleza tão fulgente pode orquestrar. Vou desafinar o meu instrumento na tua frente para te tocar. Porque amar é a única música que importa. Vou peregrinar por entre os acordes de uma música insabida e insólita. Eu sou a música das minhas insuficiências e da minha amorosa condição? E a tua cadência nos convidará para a dança de nossa inexatidão. Nossa dança é secreta como o útero das emoções. Amar precisa de coreografia? Precisa que eu seja e que tu sejas. Precisa que eu deixe de precisar de coisas que não preciso. Amar é minha única precisão.
Melodicamente vou desafinar para entoar no teu íntimo os meus acordes possíveis e o descaminho dos meus silêncios. Eu sei que mereço a carícia do teu ouvido. A minha beleza precisa da minha dissonância. Será que o meu amor caminha justamente nas aléias acústicas das minhas dissonâncias? Tenho força o bastante para ser balbúrdia de sons? Cola o ouvido na minha pele para me ouvir: eu não sei fazer silêncio nos poros.
Tenho olho que aguente ver as coisas que são metade coisa e metade abismo? Eu aguento sentir na pele o desfazimento das minhas hipotéticas certezas? Eu me radico num terreno de intempérie em que dá uma flor tão bonita, de pétalas imprecisas como se fossem chamas de vela, não se sabe onde termina a pétala e onde começa o ar. Eu preciso ser indelimitada para saber o que me circunscreve. Preciso que as flores luminesçam a minha primavera interna.
Abraço os meus esvoaçamentos, meu esboços. Minha escrita é condenada a ser garatuja de uma escrita vindoura? Assino com letra indelével que "eu amo", gravo o meu nome em pesadas tábuas de éter que só uma matéria de éter é capaz de esculpir. Sou uma lamínula diáfana e frágil porque voar pede delicadeza. Sou frágil em nome da minha reverência? Fragilidade é o desnudamento da minha coragem? Fragilidade é o nome que dou à minha entrega? Amar é uma névoa que opera em segredo o frágil das coisas? Frágil é esse nome sem pele da vida que ainda confia que sabe abraçar a si mesma? Frágil é o nome pungente e alado do amor? Eu caminho sem pele pelas aléias do meu sonho porque preciso de uma vestimenta sagrada. Não quero que ela me vista, quero que ela me ame fundo como a confiança de uma cegueira.
A minha nudez há de robustecer a minha transparência e a minha irmandade. Irmandade é a consonância de todos os que excursionam para o sagrado? Irmandade é eu desembocar tão desmesuradamente humana no teu sendo que é também o meu? Irmandade é eu te ser tanto?
Eu me temo porque quem sabe se eu sei nadar no mar das minhas intensidades. É que um dia me afoguei. Me afogar foi o jeito desajeitado com que o mar me contou seu tamanho. Será que o mar sabe que só consigo enxergá-lo indecifrável? Ou a água vai ensinando a minha pele a também ser mar? Eu esqueci a minha liquidez e agora a rememoro à medida que desvirgino as águas com minhas braçadas assustadas? Eu esqueci a minha sereia identidade? Talvez o mar me ensine a ser eu e eu o ensine a ser mar.
Trafega nas minhas artérias uma rubra turbulência. Um caldo de framboesas ardentes retumba uma circulação de caos candura. A vida é vermelha como um desejo e eu crepito nessa ignescência de palavras. Albergo o entrechoque das minhas emoções convulsas, eu só sei me ser contrária, eu me atraco comigo, me sou veneno, me sou antídoto. Não sei concatenar a minha margem com a minha outra margem e sou um rio desalinhado e anárquico, mas que pulsa seu curso. Eu não concordo comigo e é essa a minha possível serenidade. Talvez seja esse o jeito torpe da vida me ninar para que eu nasça serena.
Viver é essa coisa que afoga que afaga que impede que impele que pausa que pulsa desmorona emociona cala fala responde esconde mata arrebata. Eu sou no entremeio dessas coisas? Que vexame eu ser de pele! Preciso ser para continuar viva.
Por que me julgo e me promulgo severas sentenças? Eu interdito as minhas veredas com os meus veredictos? Sou só gente-pedaço-de-realidade, pequeno pulso vibrando o pulso do mundo, pequena parte tentante sorvendo possibilidades. Minha ânsia de amar me advoga e me absolve. O outro me ataca e me acomete? Ele está empunhando as suas verdades meninas para me contar assustado do seu frágil? Não inunda a nós todos esse humano que parece uma infância incurável? Ficamos inflamados e graves, defendendo veementes as nossas verdades de brinquedo. Ás vezes tenho vontade de rir de nós com amor, com o amor doce de quem surpreende crianças brincando adultezas.
Eu preciso estar certa do que o outro, como o outro, porque o outro? Nada mais preciso senão amar e só o amor me ensinará a crescer dentro da minha infância. Serei, até a velhice, dessa pele-infanta-existência e tenho de brincar de me amar de verdade. Invento uma genial brincadeira de ser criança abraçada, amada, nutrida. Quando ficar velhinha, vou brincar de uma alegria que só a sabem as meninas- velhas. Haverá brinquedo e guloseimas nas minhas rugas. Haverá, como todo o sempre, fragilidade e abraço.
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