Separação (Carta para minha enfermeira)
Amor meu, parecias menina-moça, assustadiça de seu primeiro sangue. Dissecou-se o Vosso corpo de sob a minha pele, amor de minha vida, à nossa revelia e à vigência de nossa virgindade. Era pra ver a causa de até que a Tua morte nos separe. De que mesmo morreste a Tua morte de nós? Não olha pra mim. Não me avassala de tanta denúncia. Me devolve as pálpebras para que eu as aperte em torno do tumor dos meus olhos. Me deixa trancafiar as retinas. Já é tarde, um gosto de olho já me amarga o peito. Remove este fel que me percorre. Eu peço clemência a quem quer que seja. Quem fechou a torneira de ar do meu mundo? Cala a boca desse arauto insistente, devolve a luz da minha garganta até que eu não mais escureça.
Saudade asfixia tanto assim? Saudade dos dois segundos antes. Antes de perder-te, amor de minha vida. Corpo lânguido e plácido que eu tanto amei. Viúva e defunta, eis o que sou, e nem mesmo me sobeja força para acompanhar meu féretro. Por que foste tão pouco e te amei tanto? Te traz de volta nesse eco do meu rastejo... nem que seja um naco... uma farpa... um último gole... nem que seja fel-doce...
Será que existe sabão ou antídoto, prece... ou cicuta? Amálgama das minhas carnes, não te descoles levando a pele dorida deste que me pulsa. Não me deixes contorcida e inerme. Por que eras tão pouco, minha enorme falta? Não te degredes de mim, amor trânsfugo. Empresta-me um dedo, eu vou enfiá-lo na garganta do tempo. Nem mais um grão de minha vida darei à goela das ampulhetas. Devolve o visgo do útero que me alberga. Dá-me calor e água. Dá-me intumescência circundando os meus contornos. Dá-me defesa. Dá-me um vomitório, pelo amor de Deus.
Até que não sobre nem o nada, que eu me regurgite intensa e inteira, dá-me a benção de abolir-me de ser. Eu quero me erradicar da ordem das coisas. Não quero um álibi que me salve, quero a condenação irreversível. Onde devo depositar o meu último deitar-me? Alguém me estanque de me perder tanto. Me tragam bandagens quentes, um curativo compressivo, alguém me impeça de verter minha última sede. Alguém me salve, me cuide, me reensine.
Houve alguém. A enfermeira das bandagens internas. Bandagens de palavras. Emplastos de mãos entrepostas e lágrimas comungadas. O silêncio e o sangue suportados a duas humanidades. Foste a fresta grávida de horizonte na ausência de janelas. Que varredura íntima empreendemos. Quanta página em branco no livro já escrito. Quanta erosão nas cores estagnadas, quanta ilusão nas flores desabitadas.
Que dor, amor meu, o peso de não ter-te, morreste do desanunciado da certeza interna. Eu orei junto à minha enfermeira: Senhor, abre no meu cerne uma mangedoura para o amor. Fende, Senhor, as vastidões compactas do meu medo, inaugura Tua nascente. A dor me deixa eloquente: é difícil até que eu ouça o meu calar: a vida então fala em mim porque a minha fala é pequena. Meu silêncio é a mangedoura das novas palavras. É preciso que eu cale a boca, que eu feche os olhos. É preciso alargar a pelve para a passagem do sagrado. É a experiência do lancinascente. Lancinante? Nascente.
Deste-me aos braços a minha pequenez. Eu te acalento nos braços, pequenez amada que sou. Pequenina matriz trêmula dos meus passos e pequenino prenúncio alegre do que ainda não sou. Pequenez querida que nino junto à tua e às todas nossas. Existe um todo que nos acalora. Existe amor que guia nossa aparente incoerência. Queria que minha enfermeira coubesse nas minhas palavras, mas ela não cabe nem nas dela. Algo maior veio urgir de encontro a nossa pequena carne. Se eu pudesse pinçar um instante, seria este: o inspirar lento e o fechar dos olhos, tempo para que os sentimentos de acomodassem nas palavras. Olhos redondos, pasmos do encantado da vida...
Solidão, vasto vácuo descomunicando-me a mim mesma. Terá ficado a minha voz do outro lado do deserto? Quase não me ouço e é quase que a minha coerência me abandona. As vacuidades são moças grávidas. Tenho poros urgenciados pela ânsia de viver. Me extravaso e me recompilo. Sou em curso. Sou aos goles, vou me bebendo paulatina do copo da vida. Sou aos haustos. A vida se me insufla às lufadas. Existir é aprender a ser pulmão, é o alargar das mucosas, é rebalizar as pleuras. Sou-me uma coletânea de percursos inter-multiplicantes. É preciso com fé desconstruir os claustros? E construir outros? Não. Construo uma casa feita do cimento das asas.
Visionário? Não, é a exacerbação do olhar, é a beleza redesvirginando as retinas. Como é lúbrico vi-ver a sensualidade do porvir seduzindo o comezinho dos dias, como quem ama na segunda de manhã. Estão batendo na porta. É uma arauto do Afago do Todo...tem um bilhete..."eu te trouxe um buquê de cotidianidades". Põe na mesa, não espera, enche os olhos desse agora, permite o erógeno das narinas, refestela tua sanha de amar mais. Mata a tua sede nesse copo de simples. Será que sempre existiu um sol escondido na sempre-viva da calçada e eu nunca vi?
Ah olhos imberbes.Hei de incutir-lhes a maturidade até que cresçam o bastante pra puerilizar a vida. Quero aninhar as latências durante o estio, quero aguentar o inverno, quero erigir no cio. Quero renunciar a beleza para ver a candura. Renuncio à beleza das cascas e das camuflagens, quero a beleza das carnes crescendo desde dentro. Por quantas avalanches de sangue passaste, chaga amada e tez dorida do eu que sou? Como é linda a sua pele rugosa e cicatricial. Eu não quero a lisura, quero a insígnia cutânea da minha auto-militância. Quero o registro dos meus passos. Quero o mapa do meu me amar. Falo demais do eu? É que eu precisei descer meu poço pra te oferendar água, é só assim o dar de beber ao nós.
Sou amor e acervo. Desgarroteei o meu verso e a minha voz, pavimentei a mim mesma um chão de sementes. Quero esticar-me até a minha última complacência. É do diâmetro da minha dilatação que eu predico a vida. Eu, nudez tanta, quantos dedos já me cabem? De quantos dedos estou nascendo hoje?
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