Carta ao outro
Autobiografo-me no entalhe do teu sendo esculpindo o meu. Sou escultura da tua presença. E a ti também esculpo, e contigo sou grão de argila de uma escultura maior; somos pontos que dançam e desenham o holograma vivo da existência.
Somos labirintos com mapas impressos na carne do outro. Os teus pés se justapõem aos meus e perfazem sendas que se entremeiam, e é do nosso compasso a geografia incógnita que nasce e vai se inventando.
Só no espelho de ti me conheço, apalpo os meus contornos e desbravo os recônditos de mim. Só contigo deflagro meu crescer, teço o caminho que vou elegendo para perscrutar meu dentro, e dele sorver meu sentido e o nosso. Na vida tão lúdica, o onírico, hora a hora me beija a realidade. Numa tela porosa deito-me paisagem, sou pincel e defloro as cores, faço amor com as texturas, seduzo nuances e as aquarelas me são harém. Preciso de teu espelho para guiar minhas mãos e co-autorar minha arte, da tua cumplicidade no rir meu riso e verter meu choro, e no sofrer de minhas perguntas. Preciso que a luz única de teu espelho incida no prisma que sou e me desvirgine as cores que ainda não conheço, preciso de ti.
Me oferto-te cálice e tomo-te por pão, bebemos de nós nosso desvendar. Derramei-me nas tuas frestas e comunguei teu profundo, emergenciada de amar. Somos nutrizes uns dos outros.
Clarice um dia sussurrou-me das entranhas da sua alma "quando uma partícula disse sim a outra partícula a vida fez-se". Ela tem mesmo mania de beijar estranhos e salpicar-lhes as pétalas-palavras que profere.
Jamais dançamos sós. A minha cadência convida a tua e a beleza ímpar do teu passo que do meu diverge a nós converge ao vivo que gestamos.
Mas a rudeza de mim me trai, quem dera eu fosse permeável como Clarice. Estranho o teu diferente e tenho arroubos de excluir-te e de julgar-te e de extirpar-te de mim. Quero ilhar-me em meu egoísmo e tribalizar-me solitário: solidão, palavra impossível.
Ah, quando me inebrio nesse engodo... Rastejo e agonizo inerme, no casulo suicida em que me encarcero, sôfrega e pedinte de ti, pois só contigo gesto e sou gestado, só em nossa união é que a vida quer viver.
Pobre de mim que quero congelar-te e satelizar-te ao insano de meus desejos. Esqueci-me da luz singular dos teus olhos e do intenso da tua alma. Esqueci-me da incandescência vibrátil que te pulsa no peito e te enfuna as artérias, gordas da volúpia de ser ti mesmo. Esqueci-me do teu ímpeto único de amar. Esqueci-me do som irrepetível da tua voz que vibra junto à minha e entoa comigo uma melodia inaudita, instante a instante, sinfonizando nosso existir: somos compositores perenes.
Por que me esqueço? Por que a morte me permeia a vida? Por que esquartejo minha existência e a tua e amargamos o mortificar de nós?Talvez porque verdade seja sinônimo de busca e busca de inconclusão, e de caminhar.
Quem será mais a forte, a vida ou a morte? Ou será que são indissociáveis e complementares como o ser-me e o ser-te, e o sermos todos? Se a morte desse instante é implacável e absoluta. Ou será que é prenhe da vida de outro instante?
A morte. Essa que me estraçalha e me eviscera os nervos, e me desarraiga os pés do chão. Urro a minha dor e vertigino-me na angústia de morrer, em vão tento agarrar-me a corrimãos no éter. Então satanizo a vida e quero proscrevê-la de mim. Mas em que braços eu acordo em outro berço?
A vida se confirma na negação de si mesma, põe-se em negrito para contemplar sua resplandecência, declama seu verso na estranha poesia de seu reverso. Talvez seja uma moça muito vaidosa. A vida en-Luta, mas Vivi-fica.
E se tantas dessas mortes sou eu que te sirvo quando me omito de cuidar-te e de dar-me ao teu cuidado. Ou quando nos abstemos de cultivar os arados do Éden que nos foi dado. Renegamos nossa Mãe-Terra, nossa nutriz maior.
Toma minha vida-menina nos teus braços e dá-me a tua. Viver é cuidar de criança. Se a minha alma tem joelhos fincados nessa concretude, quero fazer-te templo, e que minha oração seja reverenciar a cada dia o inconspurcável de ser-me e ser-te.
Olha comigo essa vida que se convida para viver seu intenso, acalenta comigo o escavar das alturas de nós. Havemos de libertar os alados que nos habitam, ávidos por alçar voo de asas bem abertas, livres e entrelaçadas, orlando o horizonte inimaginável que vela por nós.
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